GERALDINA PEREIRA FERNANDES (*23.Junho.1913; +23.Julho.2002)
Textos


O que é Saúde Comunitária, sobretudo pela minha tese de que este é campo epistêmico configurador de uma Nova Lógica e Racionalidade de Saúde Pública e de Saúde Coletiva e campo integrador dos cursos de graduação em saúde no Brasil? 

Provavelmente muitos sabem que, além da organização estatal e acadêmica de conhecimentos nos sistemas de Saúde Pública e Saúde Coletiva, os conhecimentos e as práticas de educação e saúde familiares e populares no Brasil também se organizaram de várias formas. 

Educação e Saúde familiares, Educação e Saúde populares, são equivocadamente instituídas ou concebidas por conhecimentos a-científicas e práticas alternativas, sem serem (re)conhecidos como saberes –apesar da construção do conceito de saber popular: uma das formas de organização desses saberes e práticas está representada ou envolve os Movimentos Sociais (MSSs) com os seus tradicionais e novos agentes socio-políticos.
No meu entendimento e instituindo diferenças entre conhecimento e saber, os MsSs aproximam, resgatam, expressam e redimensionam saberes e práticas tradicionais, não formalizados em conhecimento científico mas que constituem –se assim forem formalizados- os fundamentos de um campo epistêmico a ser nomeado Saúde Comunitária. 

Saúde Comunitária (tanto quanto a Educação Comunitária), a serem construídos como áreas epistêmicas, tem sua força estruturante no sensus communis, o senso de comunidade. 

O sensus communis é o gerador de consciência e responsabilidade histórica, de consciência e responsabilidade sanitária, capaz de formar "Coletivos Organizados" ou comunidades referenciados pelo Paradigma Promoção da Saúde (=leia-se Qualidade de Vida). 

Pelo sensus communis identica-se no Brasil a formação de vários Movimentos contra-hegemônicos. 

Os Movimentos Comunitários, expressos desde as resistências indígenas contra a divisão territorial do Brasil em grandes pastos e engenhos e as resistências negras à mesma rede de males, até os seus sucessores nas guerras camponesas de Canudos (1893-1897) e Contestado (1912-1916), alcançando os Movimentos Populares provinciais entre 1831 e 1849 associando em regiões diferentes tropas, pequenos proprietários, camponeses, indígenas, escravos, estancieiros, proprietários com os seus interesses antagônicos. 

Os Movimentos Comunitários e os Movimentos Populares no Brasil são contrapostos à violência histórica dos movimentos dos governos (coloniais, imperiais e republicanos) forjando desenvolvimento econômico com moeção e gastação de corpos e sadismo antropofágico: mais um exemplo dessa trágica concepção de desenvolvimento é o extermínio de etnias indígenas e a destruição da mata nativa com importação de árvores do hemisfério norte para a abertura e construção, em 1890, da Avenida Higienópolis –hoje Avenida Paulista– em torno da qual os barões do café em São Paulo construíram seus casarões. Ironicamente, também é a partir dos anos de 1950 que os mesmos casarões são derrubados para o erguimento dos grandes bancos, instituições financeiras e edifícios residenciais – a nova representação de desenvolvimento. 

Tanto os Movimentos Comunitários quanto os Movimentos Populares até os Movimentos Sociais da atualidade, incluindo-se o Movimento Estudantil, sempre foram percebidos como ameaça e obstáculo ao Estado lusitano ou posteriormente ao Brasileiro erguidos um e outro à margem das comunidades e sociedade brasileira e neobrasileira conquanto moendo e gastando os seus corpos; sobretudo são vistos como ameaça e obstáculo quando deles surgem novas elaborações de modos inclusivos de formação e concepção de serviço ou trabalho, comunidade e cultura, ciência e educação. 

Um desses exemplos já historiado por Sarah Escorel tem duas direções convergentes:
- a primeira se desenvolve a partir da década de 1960 com o Movimento Estudantil Médico e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) para estruturação da teoria social da medicina com os seus conceitos básicos de determinação social da doença, historicidade do conceito saúde-doença, processo de trabalho, poder médico, medicalização e com os conceitos estratégicos de consciência social, desenvolvida por prática política e consciência sanitária, e transformação social; a teoria social da medicina, com abordagem marxista materialista histórico-dialética, banha-se nas fontes da medicina social inglesa, do estruturalismo francês e da sociologia política italiana. 

- a segunda é o Movimento Médico, organizado a partir da primeira metade da década de 1970 para reestruturação da prática e da consciência do trabalho médico, com a qual ocupam os seus próprios sindicatos e se articulam com os sindicatos de outras profissões.
Da convergência dessas duas direções de Movimentos Estudantil Médico e Médico funda-se o campo teórico do sanitarismo com ideologia marxista ou social. 

O sanitarismo marxista ou social opoõe-se aos modelos médicos do sanitarismo desenvolvimentista (=preventivismo) com ideologia positivista traduzida na história natural da doença e na multicausalidade. E, também, difere do modelo oficial de medicina comunitária, à moda norte-americana, racionalizadora de atos e custos restrita à extensão de cobertura da prática médica com a ideologia da Organização Panamericana de Saúde conhecida como integração docente-assistencial. 

O sanitarismo marxista consolida o campo teórico-político Saúde Coletiva com o Movimento Sanitário e a proposta de Reforma Sanitária. 

Ao lado e às vezes junto aos Movimentos desencadeadores do campo Saúde Coletiva estão os anteriores Movimentos Comunitários, Sociais e Populares mobilizados nacionalmente e presentes para a 8a. Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, e na qual se afirma o conceito e a proposta de Reforma Sanitária e a defesa do Sistema Único de Saúde (SUS). 

A Rede de Movimentos apresentada evidencia a formação e a diferença entre dois tipos de sistemas ou conexões de fim, de acordo com a Escola de Pensamento de Wilhelm Guillermo Dilthey: os sistemas culturais e os sistemas de organização da sociedade. 

Um exemplo de sistema cultural é o advento da área epistêmica denominada Saúde Coletiva, formada da intelectualidade acadêmica crítica e reflexiva, emergente de vários campos do conhecimento. 

Um exemplo de sistema de organização externa da sociedade é o campo estatal denominado Saúde Pública. 

Um exemplo de sistema de organização interna da sociedade é exatamente a Saúde Comunitária, referenciada pelos Movimentos Sociais tradicionais e novos, ainda não sistematicamente auto-reflexiva e elaboradora de si mesma como campo específico de saber. 

O que se produz com os conceitos e práticas de educação e saúde familiar, educação e saúde popular é a leitura acadêmica, sobretudo da Saúde Coletiva, do ainda não sistematicamente elaborado campo de Saúde Comunitária procedente do mar empírico da história de pessoas e comunidades de pessoas; além disso, aqueles conceitos e práticas resultam das estratégias de aproximação da elite acadêmica com os movimentos de organização interna da sociedade e sua pretensão também criadora dos conceitos restritos ou ampliados de educação em saúde, extensão universitária;, sustentando a produção intelectual dos profissionais de saúde e professores universitários militantes contra o regime de exceção brasileiro. 

A proposição diferencial que advogo, nesse contexto de idéias, é a de que a Saúde Comunitária é fonte epistemológica de composição e reposição de saberes e de práticas na Saúde Pública e na Saúde Coletiva e não tributária ou receptáculo dos mesmos; por isso, é campo epistêmico configurador de uma Nova Lógica e Racionalidade de Saúde Pública e de Saúde Coletiva e campo integrador dos cursos de graduação em saúde no Brasil. 


(Imagem: Monumento às Três Raças, Praça Cívica de Goiânia)
Carlos Fernandes
Enviado por Carlos Fernandes em 17/03/2007


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr