GERALDINA PEREIRA FERNANDES (*23.Junho.1913; +23.Julho.2002)
Textos


5.2 – A CONCEPÇÃO FILOSÓFICA DE PENSAMENTO HISTORISTA

 

A concepção filosófica de pensamento historista, fundada no Historismo de Wilhelm Guillermo Dilthey, antecipa e, talvez, ultrapassa as posteriores concepções  filosóficas de pensamento holístico, sistêmico e complexo; por isso, é fundamental explicitá-la, embora sumariamente.

 

Historismo é revolução cultural produzida por Guillermo Dilthey dentro da Escola Histórica Alemã por ele fundada com o lançamento em 1883 e na Alemanha de sua obra Einleitung in die Geisteswissenschaften ("Introdução às Ciências do Espírito"), traduzida e publicada em França, no ano de 1942 e em dois volumes, com o nome de Introduction a l'étude des sciences humaines ("Introdução ao estudo das Ciências Humanas"), também traduzida e publicada em língua espanhola com o nome de Introducción a las ciencias del espíritu, em 1945; esta Introdução, hoje volume I, em alemão, das Obras Completas de Dilthey, é obra de antropologia do homem e da mulher históricos, ou seja, antropologia psico-histórica.

Nesse contexto, a Escola dos Anais dos anos de 1920, conquanto seja um estrito movimento francês e do pensamento francês, e a batizada nova história dos ensaios de Jacques Le Goff em 1978, são um eco tardio do Historismo alemão: a versão francesa e positivista do Historismo alemão pode ser detectável no pensamento durkheimiano de Lucien Febvre e Marc Bloch com a sua revista originária e aglutinadora do pensamento da Escola dos Anais, a Anais: economia, sociedade, civilização, editada a partir de 1929.

 

A revolução cultural produzida pelo Historismo desloca o lugar ocupado pela Filosofia antes do positivismo e, coexistindo com o movimento do Neokantismo, impede que esta volta a Immmanuel Kant seja a reatualização da Filosofia Transcendental e a ela contrapõe a Filosofia Crítica da História; ao mesmo tempo, é reação cultural contra a Filosofia da História, a metafísica do positivismo e sua pretensão de unidade das ciências sob o comando da Sociologia.

 

Em suma, o Historismo declara e demonstra o fim da Metafísica, erguida de Sócrates-Platão-Aristóteles à Augusto Comte: sem negar a construção dessa Metafísica e o seu papel amadurecedor do pensamento europeu ocidental (=a metáfora para significar mundo platônico-aristotélico) quanto ao mundo empírico-experimental, o Historismo limita esse mundo ao estudo dos nexos causais da natureza ou dos fenômenos pelas Ciências da Natureza ou Experimentais e congrega o estudo dos nexos do mundo histórico e não fenômenico ao campo da Ciências do Espírito ou Experienciais:

 

-à crítica da razão pura Guillermo Dilthey contrapõe a crítica da razão histórica para análise hermenêutica das condições do conhecimento na consciência histórica e, com esse ato historista, ergue a Epistemologia Histórica;

-à crítica da razão teórica contrapõe a crítica histórica da razão para análise hermenêutica das condições históricas do conhecimento e, com esse ato historista, ergue a Filosofia da Vida, da Experiência, da Empiria – o sistema filosófico superador do racionalismo, do empirismo e do transcendentalismo;

-à crítica da razão prática contrapõe a autognose histórica para análise hermenêutica das condições da consciência histórica no conhecimento e, com esse ato historista, ergue a Psico-história – uma psicologia analítica e descritiva do homem e da mulher históricos.

 

Num parêntese explicativo, do conceito diltheyano de autognose histórica fundadora da Psicologia Histórica, posteriormente Carl Gustav Jung ergueu o método construtivo da sua Psicologia Analítica para a teoria histórico-racial da psique humana; Sigmund Freud ergueu o conceito e a prática metodológica de psicanálise para sua teoria psicossexual da personalidade e Eric Hombourger Ericson ergueu o seu método denominado psico-história para a teoria psicossocial da personalidade e do comportamento humano: se a hermenêutica para Dilthey interconecta antropologia psicologia história, o método ericsoniano de psico-história interconecta psicanálise e história, o método analítico junguiano interconecta Dilthey e Vico, o método psicanalítico vincula psiquiatria e sexologia.

 

Todos esses métodos e técnicas, independente de suas oposições teóricas, são fundamentalmente processos analíticos da Hermenêutica, erguida por Guillermo Dilthey como ciência filosófica e ciência metodológica básica e universal das Ciências Experienciais em geral e do Historismo em particular.

 

Talvez pareça exagero mas, pode-se dizer que Jung faz historismo dos complexos e dos sonhos, Freud faz historismo de expressões do desejo sexual e dos supostos estágios do desenvolvimento psicossexual, Ericson faz historismo dos supostos estágios do desenvolvimento psicossocial. Nenhum deles, porém, mantém o fundamento diltheyano do historismo: a pessoa humana, criadora da história e da sociedade, é uma totalidade histórica, a experiência humana é uma totalidade histórica e, portanto, filosofias, epistemologias e ciências devem fundar-se nessa totalidade histórica não fragmentável e inacessível aos métodos, procedimentos, abordagens e técnicas das Ciências Experimentais.

 

Ao se estudar o pensamento de Dilthey e o seu Historismo pode-se dizer que Allan Kardec fez o historismo da natureza, da origem e do destino dos Espíritos, tanto quanto quanto de suas relações com o mundo corporal: com este historismo, Allan kardec criou o Espiritismo e uma de suas subáreas – a Psicologia Espírita, também uma psicologia analítica e descritiva qual a Psicologia Histórica de Guillermo Dilthey.

 

A diferença fundamental entre o Historismo e o Espiritismo é que aquele se refere às experiências (ou vivências) da realidade humano-sócio-histórica, circunscrita ao mundo terreno; o Espiritismo se refere às vivências da realidade humano-sócio-histórica nos mundo terreno e espiritual e suas inter-relações.

 

Para o erguimento da Psico-história, fundada na autognose histórica, Guillermo Dilthey se utiliza de alguns objetos da Estética e, de modo tão aprofundado que, por longo tempo, foi visto exclusivamente como historiador do espírito das manifestações criadoras, ou seja, historiador da cultura (kultur): a Poética, a Biografia, a Arte, a Literatura. E, com isso, funda uma concepção historista de Estética que se desenvolverá com o nome diltheyano de Ética sociofilosófica, a um só tempo Filosofia Estética da Ética –a estética ética da experiência moral- e Filosofia Ética da Estética –a ética estética da moral experienciada: sua obra sobre ética e os seus ensaios sobre as concepções poética e filosófica de mundo caminham naquela direção.

 

Ratificando: crítica da razão histórica é consciência histórica quando tem por referência analítico-descritiva as expressões da vivência, também nomeadas por Guillermo Dilthey de manifestações ou concretizações da vida, espírito objetivo; é autognose histórica quando tem por referência analítico-descritiva a própria consciência histórica.

 

Outros nomes do Historismo ou da Tradição da Filosofia Crítica da História, criadores de sistemas historistas particulares e do mesmo modo opositores às teorias do Iluminismo e do Jusnaturalismo, podem ser citados e acompanhados na obra de Friedrich Meinecke sobre a origem do Historismo, nas obras de Guillermo Dilthey e na obra de Aster sobre história da filosofia, das quais extraio os tipos de historismo e seus representantes.

Além do historismo filosófico e historismo estético de Vico, tem-se:
- o historismo de Justus Möser e sua defesa do Direito Histórico, da peculiaridade das regiões e dos estamentos e da manutenção das instituições históricas a frente e opostos à Ilustração e à Revolução Francesa
-o historismo romântico de Johann Gottfried, realizador da conexão entre Geografia e História, para quem a linguagem é expressão vivente da vida do mundo e defensor de que o fundamento da sociedade humana está na diversidade das pessoas e dos povos em seus momentos históricos variados
-o historismo romântico de Goethe para quem o conhecimento da natureza funda-se na intuição, na contemplação de tipos e de essência e não em procedimentos analíticos e em experimentações artificiais, à moda do cálculo e da medida newtoniana
-o historismo romântico de Richard Hamann e sua tentativa de desenvolvimento de uma Estética Sistemática pela qual realiza relevantes estudos sobre origem da linguagem, da idade da poesia e a poesia popular
-o historismo romântico de Friedrich von Schlegel, fundador da Estética sobre a base da história da arte
-o historismo metodológico, fundador da Hermenêutica Filosófica, representa-se por Friedrich Schleiermacher, por Ludwig von Ranke, por Augusto Boeckh (mestre de Guillermo Dilthey) e por Johann Gustav Droysen
- o historismo de Guillermo de Humboldt para o qual também a linguagem é expressão vivente e orgânica do espírito dos povos. Assim, compreender o conteúdo espiritual da linguagem é compreender os povos e os indivíduos
-o historismo de Friedrich August von Meinecke.

 

Ainda reafirmando, com Guillermo Dilthey o Historismo é Filosofia Crítica da História, opondo-se:

-à metafísica do naturalismo vigente no mundo das ciências naturais desde Aristóteles até o século XIX,
-à metafísica do positivismo de Augusto Comte e o seu ideal de unidade das ciências sob o comando da metafísica do naturalismo, além da sua intenção de descartar o conhecimento erguido a partir de hipóteses,
-ao positivismo inglês de John Stuart Mill,
-ao Idealismo Transcendental de Immanuel Kant,
-à Fenomenologia do Espírito de Wilhelm Georg Hegel,
-ao Materialismo Histórico-dialético de Karl Marx,
-à Psicologia experimental de Helmholtz, Pavlov, Thorndike, Watson, Wundt,
-e, por antecipação, à Psicanálise de Sigmund Freud.

Guillermo Dilthey é o primeiro pensador que não faz distinção entre História Psicologia e Antropologia e formula esta conexão criando, dentro da sua Filosofia Crítica da História, uma nova Filosofia da Vida; com isso, é o primeiro teórico das Ciências da Vida a formular uma lógica, uma epistemologia e uma metodologia autônomas para as ciências da realidade histórico-sócio-humana por ele denominadas Ciências do Espírito e hoje denominadas ciências sociais e humanas.

 

Se Allan Kardec tivesse conhecido em sua vida terrena a obra de Guillermo Dilthey, inicial e parcialmente publicada em 1883 na Alemanha e somente em 1942 em França, possivelmente apreciaria a formulação diltheyana da lógica, da epistemologia e da metodologia para as Ciências do Espírito (humano-sociais), independentes das Ciências da Natureza.

 

Dilthey ergue o edifício autônomo das Ciências do Espírito, limitando-se ao mundo terreno; Kardec ergue o edifício da Ciência Espírita, independente das ciências ordinárias e demonstrando a primaridade do mundo espiritual, as relações, coexistência e inter-influências entre aquele mundo e o terreno.

 

À Filosofia da Vida em Dilthey falta o rigor demonstrativo da reencarnação, da coexistência e relações entre as humanidades terrena e espiritual – demonstração efetivada por Kardec.

Carlos Fernandes
Enviado por Carlos Fernandes em 17/11/2007


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