GERALDINA PEREIRA FERNANDES (*23.Junho.1913; +23.Julho.2002)
Textos

AS DEUSAS LASCÍVIA, LUXÚRIA E VOLÚPIA1

 

  1.  Introdução

A apresentação da Lascívia, Luxúria e Volúpia na condição de deusas resulta do Projeto de Pesquisa “Corpoanálise da identidade sexual do homem: estudos de Psicomitologia e Enfermagem”, cadastrado na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo, sob o número 9174/2018. O subprojeto de Iniciação Científica, na modalidade PIBIC, é desenvolvido junto com a graduanda em Enfermagem Alícia Merícia Mendes Figueiredo e tem por título “Os padrões caracterológicos de cuidado e de não-cuidado do personagem bíblico Noé na formação do homem e da paternidade”.

 

O termo hebraico para lascívia é zimma. No livro bíblico do Primeiro Testamento tem a significação de “desejo, pensamento, imaginação ou propósito íntimo e obscuro caracterizado pelo pensamento pecaminoso”2; no Segundo Testamento é transliteração do termo grego alsegeia, significando “luxuria desenfreada”, “lubricidade”, “libertinagem”, “impudor” e “deturpação”3.

Luxúria deriva do latim luxuriae, cuja raiz é – lux. Daí, tudo o que se refere a luxúria tem conotação de luz, excesso (de luminosidade, de brilho), exuberância, profusão. Nesse itinerário, liga- se à volúpia no sentido exuberância, de profusão.

 

O termo latino para Volúpia é voluptas. Na mitologia romana, Volúpia é filha do deus Eros e da princesa Psiquê, a mesma que, na mitologia grega, é nomeada de Hedonê  deusa do prazer. Depois de muitos padecimentos quase intransponíveis4 e com a intervenção do deus Mercúrio (Hermes), Psiquê é levada ao Olimpo e torna-se imortal. Somente então formalmente casa-se com Eros. Não sem importância o detalhe mítico de que Hedonê ou Volúpia, nasce no Olimpo como a deixar claro para os mortais de que prazer, amor e paixão é um apanágio dos deuses a que homens e mortais não têm acesso. Eis o motivo pelo qual, ao menos no Ocidente, as grandes histórias chamadas de amor são tragédias e dramas, historificando a não consecução do amor. Fato esse igualmente evidenciável nas letras de canções brasileiras onde o desfile viciante é de lágrimas e de dor, de sofrimento e de tristeza, de tédio e de traição, de separação e de abandono, de desgosto e de aborrecimento – tudo isso regado a muita insônia, bebedeira e prejuízos emocionais e financeiros, quando não a violência e a morte.

 

  1.  Eros. Psiquê e Volúpia

Para brevemente relembrar os padecimentos quase inteiramente voluntariosos de Psiquê, deve-se acentuar que os mesmos são consequentes à sua arrebatadora beleza e pela qual todos os homens, ao invés de disputar-lhe o amor de mulher, adoravam-na qual se a mesma fosse a deusa Afrodite. Por tal adoração, os templos e santuários da deusa começaram a ficar vazios.

 

Certo dia, Eros que a tudo invade foi invadido por Psique e solicitou ao vento Zéfiro conduzir A Bela ao seu Palácio Encantado. Uma legião de vozes serviam a deslumbrada anfitriã e, desde a primeira noite, Eros a visitava para manter atos sexuais. Assim era toda noite e, antes do amanhecer, retirava-se o deus sem permitir à mulher a visão de seu esplendor.

 

O retiro de amor entre Eros e Psiquê não permaneceu em segredo por muito tempo. A deusa Fama encarregou-se de divulgar a “desdita” da suposta prisioneira Psiquê.

 

As duas irmãs de Psiquê, cobertas de luto, com segundas intenções visitaram os pais para consolá-los. Mesmo advertida por Eros do perigo iminente, a jovem amante convenceu o deus a permitir o transporte das irmãs até aquele palácio pelo mesmo vento Zéfiro.

 

Deslumbradas com a ventura de Psiquê, as irmãs foram possuídas por Inveja, ainda mais porque os seus esposos não tinham nenhum atrativo: um era de baixa estatura qual um menino e o outro era velho e doente. Voltando aos seus lares, planejam um modo de aniquilar a ventura de Psiquê. E, dias depois, retornam ao palácio da irmã, conseguindo envenená-la com uma desconfiança: Psiquê não se deitava com um homem, mas com um monstro! E, por isso, precisava precaver-se e desmascarar o terrível visitante noturno.

 

Envenenada pela desconfiança, Psique se arma com um punhal e com um candeeiro. Quando a noite o belo deus dorme ao seu lado, projeta luz sobre o amante. E, decepcionada consigo mesmo e radiante com a formosura do deus ao seu lado, Psiquê não consegue mexer-se e nem afastar seus olhos da contemplação daquele rosto divino.

 

Psique tentou matar-se com o punhal levado para atacar o suposto monstro, mas a arma lhe caiu das mãos e, inadvertidamente, feriu-se com uma das flechas de Eros. A princesa, agora e para sempre arrebatada de amor, ataca a boca de Eros com beijos, esquece-se do candeeiro aceso que derrama uma gota de óleo no ombro de Eros adormecido.

O formoso Eros acorda e, percebendo-se descoberto, sobe aos céus e, para sempre (pelo menos por enquanto), afasta-se de Psiquê. Em vão, a partir desse dia, Psique peregrina em busca do amante.

 

Uma Gaivota vai até Afrodite e narra toda a história entre Eros e Psiquê, inclusive com relação ao ferimento do filho. Furiosa e ardendo de ciúmes pelo filho, Afrodite recolhe-se ao reino de Poseidon, enquanto Psiquê prossegue desorientada em busca de Eros.

 

Na sua busca alucinada, chega ao palácio de Afrodite, onde é atendida por três de suas escravas: Hábito, Inquietação e Tristeza. Após ser humilhada e espancada pelas servas, Psiquê é levada à presença de Afrodite. Furiosa, a Grande Deusa reinicia as sessões de humilhações e espancamentos, após os quais impõe à princesa a realização de quatro trabalhos impossíveis de serem concretizados.

 

O primeiro impossível trabalho para ser realizado em apenas uma noite era Psiquê separar, por espécie, um propositadamente misturado monte de trigo, cevada, milho, grãos-de-bico, sementes de papoula, lentilhas e fava. Socorrida por um batalhão de formigas operárias, tudo é separado e o primeiro trabalho humanamente impossível é realizado.

 

O segundo trabalho impossível é adentrar em um bosque, próximo a um perigoso rio, e recolher do corpo de furiosas ovelhas 

flocos de  de ouro. Desgostosa com a terrível impossibilidade, Psiquê entra no bosque para matar-se no rio. Um caniço verde a impede de cometer suicídio, orienta- lhe como recolher os flocos exigidos e o segundo trabalho humanamente impossível é concretizado.

 

O terceiro trabalho impossível é escalar um escorregadio e íngreme rochedo, carregando um vaso de cristal, chegar a uma fonte vigiada por horripilantes dragões e encher o delicado vaso com aquela água – a mesma água formadora dos rios Cocito e Estige, dois dos rios no reino de Hades. De novo, Psiquê intenta matar-se e é socorrida por uma águia de Zeus que lhe transporta e lhe permite encher de água o vaso de cristal.

 

Divinamente furiosa, Afrodite exige o último e fatal trabalho. Psiquê recebe da deusa uma pequena caixa, cabendo-lhe penetrar no mundo de Hades, apresentar-se a Perséfone e pedir-lhe, em nome de Afrodite, uma pequeníssima porção de imortal beleza. O argumento para o pedido era que Afrodite gastou toda a sua divina beleza cuidando de Eros doente. Novamente, Psiqué decide matar- se: eis o caminho mais curto para chegar ao mundo dos mortos. Impedida por uma alta Torre da qual pretendia lançar-se, recebe instruções pormenorizadas do modo como chegar ao reino de Hades e como se comportar perante Perséfone. Recebida com extrema gentileza pela esposa de Hades, a jovem princesa explica-lhe o motivo da visita e recebe da deusa a porção da imortal beleza, encerrada na pequena caixa. Ao sair do Hades, o dia amanhecia e uma fatal curiosidade se apossa de Psiquê: abrirá a caixa e tomará um pouquinho da porção e, desse modo, reencontrará e reconquistará o amado Eros. Surpreendentemente abre a caixa e, ao invés da porção de imortal beleza, é bafejada pelo sono paralisante.

 

Eros se recupera do ferimento, sente saudades de Psiquê, encontra-a em sono profundo, recoloca na caixa o sono paralisante, desperta a amada e orienta-lhe a entregar a encomenda Afrodite. O formoso deus pede a intercessão de Zeus e esse ordena a Hermes para chamar todos os deuses e deusas a fim de realizar uma assembleia.

Perante os demais Imortais, Zeus ordena que Eros se case com Psiquê. O argumento de Zeus para oficializar o casamento é interromper a luxúria de Eros. Os Imortais aprovam a ordenação, Afrodite perdoa Psiquê e a princesa é imortalizada. Do divino casamento, nasce Hedonê ou Volúpia - a deusa do prazer.

 

  1.  Caracterologia das deusas trigêmeas

Pelas íntimas correlações, apresento Lascívia, Luxúria e Volúpia na condição de irmãs trigêmeas – não no sentido biológico, mas no entrelaçamento de suas qualidades.

 

As deusas trigêmeas Lascívia, Luxúria e Volúpia têm um poderoso séquito de manifestações insinuadoras e insidiosas, não restritas ao âmbito do que se conhece com os termos sexo e sexualidade. Tais manifestações são conhecidas pelos termos (as vezes usados como metonímias) impureza, libertinagem, incontinência, despudor, sensualidade, libidinagem, concupiscência, lubricidade, fornicação5, impudicícia, devassidão.

 

Lascívia nada vê e tudo olha; embora jamais alguém a contemplou nua, ela estimula a nudez de tudo e de todos, a todo tempo e em todo lugar  principalmente a nudez corpórea. Sua especialidade é a da insinuação por palavras, pensamentos, sentimentos e atos; por isso, no campo sexual, é patrona de todas as artimanhas do jogo e da sedução para arrastar e convencer, fomentando toda a espécie de deboche, de pornografia.

 

Porque nada vê e tudo olha, a presença e a ação da Lascívia são de despudor, de impudicícia, de devassidão.

 

Luxúria nada ouve e tudo escuta, opõe-se à continência e à castidade com relação a qualquer pensamento, sentimento, palavra e ato. Embora onipresente em todas as áreas da atividade humana, facilmente está envolvida com o mundo sexual. Porque nada ouve, desprestigia, indignifica e zomba de tudo quanto não se relacione à fruição máxima de todos os prazeres. Eis porque, sempre insatisfeita, ela afunda todos em vícios, tornando-os uma necessidade permanente e irresistível.

 

Porque sempre insatisfeita, Luxúria está sempre à procura de formas e de fórmulas para satisfazer sua suposta falta, carência ou extinção de algo; por isso, facilmente é a força motriz de todas as formas de exagero. Com relação ao mundo sexual promove e mantém o grau máximo possível de lubricidade6, libertinagem, fornicação, adultério, parafilias, incontinência e toda forma de orgia sexual.

 

Ainda porque sempre insatisfeita, Luxúria nunca se cansa, desconhece repouso e, por isso, leva o seu séquito à fruição de tudo até a máxima exaustão, do ponto de vista humano.

 

A especialidade da Luxúria é diluir, quebrar, afastar qualquer resistência que se lhe opõe aos desígnios e, notavelmente, sua marca registrada é a da possessividade e do ciúme absolutos  embora tal marca esteja presente nas duas outras irmãs.

 

Volúpia nada fala e ninguém jamais ouviu sair de sua boca uma palavra clara, uma frase ou locução ainda que diminuta; no entanto, distingue-se por uma emissão melodiosa, clemente e suplicante de sussurros onomatopeicos, de gemidos lancinantes de desejo e de prazer com relação a tudo. Seu séquito de humanos, em geral, são silenciosamente insinuantes, mostram-se com lábios entreabertos e rogativos, com malabarismos e trejeitos vários – inclusive com a língua, quando a expõe. Sua especialidade é criar, promover e manter todas as possíveis formas e os mais insuspeitos jogos de sensualidade e a sua arma é prenunciar e anunciar deleites e delícias, com isso fomentando o desenfreio de todas as paixões (incluindo todas as formas do que se possa chamar de amor) cuja fome e sede nunca passam. Em resumo, Volúpia é a deusa do prazer  consumado e irrefreável.

 

  1.  A desmedida da paixão e a prudência

As inseparáveis trigêmeas Lascívia, Luxúria e  Volúpia são deusas de encantamentos e presidem as manifestações dos chamados “corações apaixonados”. Por esse motivo e porque sua lei é a do descomedimento, o homem ou a mulher apaixonados nada vêem, nada ouvem e nada falam: querem fruir e usufruir, querem engolir e ser engolidos por beijos, abraços e atos sexuais quase contínuos. Literalmente, a paixão é um feitiço e esse enfeitiçamento é promovido por graus variáveis de lascívia, de luxúria e de volúpia: a variabilidade desses graus depende da consolidação de valores e de crenças de quem está envolvido nesse estado inebriante. Conforme evidencia-se na experiência de todos, inclusive com evidências historicamente estudáveis, a desmedida é da natureza da lascívia, da luxúria e da volúpia e ninguém emerge impune de tê-las por conselheiras e parceiras.

 

Livrar-se dos descontroles e dos flagelos da lascívia, da luxúria e da volúpia é um trabalho heroico. E isso porque todos os traços que as distinguem estão mergulhados num poderoso veneno, comumente confundido com desvelo, amor, cuidado, preocupação: o ciúme. As deusas trigêmeas são ciumentas e isso porque, igualmente, são possessivas, embora a possessividade e o ciúmes sejam os traços mais marcantes da Luxúria. Na cartilha dessas deusas, nada e ninguém é de ninguém, mas tudo e todos são exclusivamente delas.

 

O caráter lascivo, luxuriante e voluptuoso está mais na acentuação desmedida do desejo e do ato do que no desejo e no ato em si. Por essa acentuação desmedida, rompem-se todos os limites e fronteiras, finam-se direitos e deveres em nome de uma fruição predatória. Eis porque o estado lascivo, luxuriante e voluptuoso é um estado de possessão, quer dizer, a pessoa está possuída, invadida por forças inconscientes que a inundam e inundam tudo a sua volta.

 

O caráter lascivo, luxuriante e voluptuoso é o de uma enxurrada, de uma enchente cujo apetite predador e devorador é insaciável. Por isso, os estudiosos desse caráter, notadamente os religiosos, insistem numa ação preventiva radical: mortificação da carne, ou seja, mortificação dos desejos da carne. Porque as deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia insinuam-se por entre pensamentos, sentimentos, palavras e atos aparentemente inocentes (= não nocivos), quando o seu caráter devastador e destrutivo aparece não haverá mais nenhum controle consciente, ou seja, da vontade.

 

Tal qual diante de uma grandiosa enchente ou enxurrada não  discursos e medidas controladores, disseminadas a Lascívia, a Luxúria e a Volúpia o estado é de calamidade generalizada: o resultado é a contagem e o sepultamento de mortos. Tudo se desagrega e se rompe,  destroçamento, “choro e ranger de dentes”. Esse poder devastador das deusas trigêmeas está exatamente no fato de que elas se insinuaram, se instalaram, se incrustaram, tornando os seus hospedeiros incapazes de qualquer defesa e resistência, à semelhança de um corpo tomado por uma bactéria – antes inofensiva – e, agora, uma superbactéria perante a qual não há mais ação profilática, curativa e nem paliativa. O corpo todo foi tomado e, imprudentemente no início, com a autorização do próprio corpo, ou seja, o corpo incontinente acariciou e hospedou as destrutivas invasoras.

 

Para o homem desavisado, o flerte com as deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia começam como um ato inocente (não nocivo), de aventura, de travessura, de brincadeira. Mas, trata-se de poderosas deusas (= poderosas forças inconscientes) que não aceitam um mero flerte, mas ardem qual incêndio iniciado com uma faísca para se alastrarem e consumirem a tudo, transformando tudo em carvão e cinzas. A continência como resultado pacientemente conquistado pela prudência é a única fortaleza impedidora de se produzir a faísca da destruição, da autodestruição.

 

As deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia não são imorais, mas amorais e, por isso, discursos e morais não as comovem, não as detêm. A corporificação de ambas é a de um incêndio generalizado e sem qualquer possibilidade de controle; daí, o estado lascivo e luxuriante é de ardência, de abrasamento.

 

Devastador incêndio, enxurrada e enchente colossais, dilúvio, vulcão em erupção, maremoto, terremoto, tsunâmi são imagens corporificadas da ação das deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia. Indivíduos, famílias, grupos sociais, nações inteiras, civilizações desmoronaram e desmoronam quando as suas fundações se ergueram e se erguem com os materiais da Lascívia, da Luxúria e da Volúpia.

 

5  O dramático e o trágico do encantamento

Na condição de deusas, Lascívia, Luxúria e Volúpia não se apresentam em farrapos, escondidas e anônimas. Ao contrário, são deusas belíssimas, trajam ricas e notáveis vestes, adornam- se com jóias raras, têm pele sedosa e acariciada por embriagantes fragrâncias, seus gestos e toques são comoventes e irresistíveis, seus olhos fascinam e enfeitiçam pelo brilho claro ou escuro, facilmente são aclamadas como heroínas e celebridades, suas vozes e seus sussurros são aveludados, seus lábios são doces como mel, sua sede e fome são insaciáveis, jamais dizem “não” e são sumamente pródigas em afagos, elogios, mimos e delicadezas narcotizantes.

 

Diante da descrição das deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia, torna-se um contrassenso associá- las a qualquer ato ou coisa impura. Essa é exatamente a teia do seu encantamento, da sua astúcia e do seu caráter insidioso porque a sua aparente pureza é nociva, elas não são inocentes. Por sua presença e ação, libertinagem confunde-se com liberdade, liberdade confunde-se com irresponsabilidade, deveres confundem-se com aprisionamento ou restrição de direitos, bondade se confunde com tolice, esperança confunde-se com perda de tempo e de oportunidade, prudência se confunde com fraqueza, continência se confunde com impotência.

 

Notavelmente, o profeta Ezequiel (capítulo 16, versículo 15) exemplifica uma das atuações das deusas Lascívia e Luxúria no âmbito da fornicação, ou seja, da prostituição: “Puseste tua confiança na tua beleza e, segura de tua fama, te prostituíste, prodigalizando as tuas prostituições a todos os que apareciam”.

 

As palavras de Ezequiel não se dirigem a uma pessoa específica, mas é uma referência histórica a Jerusalém – aquela de quem dirá Jesus (Lucas, capítulo 13, versículo 34): Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados, quantas vezes quis reunir teus filhos como a galinha recolhe os seus pintainhos debaixo das asas, mas não quiseste! Eis que vossa Casa ficará abandonada. Sim, eu vos digo, não me vereis até o dia em que direis: Bendito aquele que vem em nome do Senhor!

 

Equivocadamente, distorcidas interpretações de mitos de várias civilizações antigas associaram as deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia a outros deuses e deusas: Anuket na mitologia egípcia; Kãmadeva na mitologia hindu; Afrodite, Dioniso, Eros e Pã na mitologia grega, Freyja na mitologia nórdica; Vênus na mitologia romana, Tlazoltéotl na mitologia asteca7.

 

As distorcidas interpretações de vários mitos colaboraram para a incrustração e disseminação do próprio caráter insidioso das deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia, confundidas com outros deuses e deusas, ou seja, contribuíram para a não-consciência milenar do poder invasor e destrutivo das forças inconscientes. Esse poder cresce desmesuradamente quanto maior for a negação e a não-consciência dessas forças alojadas, reprimidas e, supostamente, guardadas e escondidas sob o véu da racionalidade. Nada do que é reprimido desaparece ou morre e não  fórmulas, amuletos, encantamentos, magias, orações capazes de “exorcizar” tais forças psíquicas componentes e expressões da própria energia psíquica.

 

Por serem forças psíquicas componentes e expressivas da própria energia psíquica, a lascívia, a luxúria e a volúpia não podem ser qualificativos inerentes à condição biológica de homens OU de mulheres – apesar de se tratar de um substantivo, do ponto de vista gramatical, feminino.

 

  1.  Pandora e Lilith

As deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia não se relacionam nem são expressões de Pandora, a mulher feita de argila e animada com sopro vital pelo deus Hefesto, a pedido de Zeus. O pedido vingativo de Zeus se deu pelo fato do mesmo ter sido enganado duas vezes pelo seu primo Prometeu -filho do titã Jápeto e da oceânida Clímene:

  • a primeira vez, Prometeu oferece um grande boi dividido em duas partes. A primeira parte compunha-se das carnes e das vísceras cobertas com o couro do próprio boi sacrificado. A segunda parte compunha-se de ossos e Prometeu os cobriu com a branca gordura do animal. Apresentou as duas porções para que Zeus escolhesse aquela de sua preferência, sendo a outra não escolhida destinada à alimentação dos humanos. Zeus escolheu a segunda porção. Depois, descobrindo-se enganado pelo primo, retirou do mundo humano o fogo divino (= a inteligência), ou seja, tornou imbecis os humanos.
  • a segunda vez e por inconformismo com relação ao castigo de Zeus sobre os humanos, Prometeu rouba uma fagulha do fogo divino, traz para a terra e devolve a inteligência aos homens e mulheres mortais.

Pelo roubo de uma fagulha do fogo divino, Prometeu é agrilhoado em uma coluna e, eternamente, uma águia de Zeus deverá devorar-lhe o fígado durante todo o dia. A noite, o fígado novamente cresce e, no dia seguinte e de novo é devorado.

A motivação básica dos atos de Prometeu é o protecionismo pelos homens e mulheres. Por esse protecionismo ou preferencialismo, ele ludibria, engana, trapaceia.

 

A punição contra Prometeu tem o seu fim apenas quando o herói e semideus Alcides (Hércules e, depois, Héracles) assassina a águia que lhe devora o fígado e o liberta das correntes. O notável é o fato de que o próprio Zeus revoga a ordem impetuosa e autoriza a ação de Alcides – seu filho com Alcmena cuja paternidade é compartilhada com Anfitrião – perdoando os delitos de Prometeu. A autorização de Zeus não é um ato de compaixão por Prometeu nem de impiedade contra a própria águia que lhe obedecia as ordens; ao contrário, é um ato para honrar e glorificar o heroísmo do próprio filho Alcides que, em última análise, é honra e glória do próprio Zeus.

 

Lascívia, Luxúria e Volúpia também não se relacionam nem são expressões da primeira mulher do primeiro homem (Adão), chamada Lilith e personagem do folclore judeu, derivado da mitologia mesopotâmica8. Na mitologia babilônica, Lilith é uma deusa ou um demônio, uma prostituta sagrada a serviço da Grande Mãe (Inana), cuja morada são os lugares desertos.

 

  1. - IMPUREZA

Se se considerar a consciência ou o consciente como o mundo dos homens e das mulheres mortais e a inconsciência ou o inconsciente como o mundo dos deuses e das deusas, pode-se falar em forças psicorpóreas conscientes e forças psicorpóreas inconscientes. As deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia são filhas não da intersecção, mas da desmedida acentuação/preponderância de um daqueles mundos sobre o outro.

 

Tal acentuação/preponderância é tão absoluta que um mundo nega e rejeita a existência do outro. Como negar e rejeitar algo não torna esse algo inexistente, o resultado dessas negação e rejeição é uma deformidade, uma corrupção de pensamentos, de sentimentos, de comportamentos. A essa deformidade ou corrupção chamo de impureza.

 

Havendo a negação ou rejeição da impureza, o contrapeso é a defesa unilateral da pureza, ou, mais propriamente, de uma aparência de pureza: são os lodos e os detritos no fundo de um poço e cuja superfície está cristalina. Basta uma pequena agitação para que lodo e detrito emerjam; daí, as muralhas erguidas para impedir a visão daquele lodo e detrito. São essas muralhas as produtoras da corrupção deformante dos pensamentos, dos sentimentos, dos comportamentos  em geral, acalentados no mundo da fantasia e, às vezes, irrompendo na forma de sonhos.

 

As três deusas alimentam-se dos hedonistas sonhos e fantasias humanas  bem característicos da fixação e posterior regressão à fase oral de desenvolvimento: tudo fruir, engolir e receber sem esforço, sem responsabilidade própria, à semelhança dos parasitas (quais os platelmintos9 e os anelídeos10) que alteram sua anatomia e sua fisiologia até a completa degeneração ou extinção de órgãos e funções pela fruição do sangue dos seus hospedeiros – considerando-se as mutações, disfunções e distonias provocadas nesses mesmos hospedeiros pela ação dos parasitas por eles mesmos atraídos e hospedados.

 

A causa eficiente, geradora da Lascívia, da Luxúria e da Volúpia, é o homem e a mulher; a causa formal é a corrupção dos valores e crenças humanas que engendram propícias condições para que se  aquela geração. Essas propícias condições são a causa material, dentre as quais:

o precipício da vaidade, o cárcere do exclusivismo, a inundação de excessos, as infiltrações do ciúme, a nuvem do personalismo, os vermes da ingratidão,. a vocação para o abismo, a sequidão dos desocupados, o charco dos distraídos, a lama do desânimo, os espinhos da perturbação, os cupins da velhacaria, as pústulas dos estouvados, os calhaus da precipitação, o vácuo da presunção, a esterilidade da indiferença, o fel dos ironizadores, a brasa viva da intolerância, a podridão da ociosidade, a escuridão do tédio, a chuva ácida das lamentações, o veneno da insensatez, o esqueleto da leviandade, o vale da indecisão, a cegueira da desilusão, o inferno do egoísmo, os aleijumes do oportunismo, o redemoinho dos desajuizados, a penúria dos imprevidentes, a mendicância do orgulho, a areia movediça da ganância, os emaranhados nós do prazer fácil.

 

Todas as propícias condições geradoras da Lascívia, da Luxúria e da Volúpia podem ser resumidas numa única causa material: a corrupção. Trata-se da corrupção dos valores e das crenças de homens e mulheres que põem do avesso aqueles mesmos valores e crenças, tornando-os contaminados de impureza.

 

A condição de impureza de pensamentos, de sentimentos e de atos humanos engendra a série de sinônimos ou de manifestações particulares da lascívia, da luxúria e da volúpia  todos resultantes do excesso, da hýbris (da desmedida, da falta de métron): libertinagem, incontinência, despudor, sensualidade, libidinagem, concupiscência, lubricidade, fornicação (= prostituição), devassidão, impudicícia.

 

As muitas e controversas concepções filosóficas e psicológicas associam a lascívia e a luxúria ao prazer na medida em que o prazer ou sua fruição sinonimiza-se à volúpia. Esvaziar a lascívia, a luxúria e a volúpia do seu conteúdo moral talvez sirva para realçar o fato de que são amorais; no entanto, em nada cooperam para a diferenciação e o aperfeiçoamento humanos. Talvez por isso, em todas as áreas da ação humana pode-se evidenciar expressões de lascívia, de luxúria, de volúpia  até nas mais improváveis e insuspeitas como a área religiosa.

 

Em geral, grande parte das concepções filosóficas e psicológicas estabelecem o dualismo entre prazer e dor ou prazer e realidade, não raro reduzindo um e outro, respectivamente, ao dualismo órfico entre bem e mal. Ora, se, ainda que momentaneamente a lascívia, a luxúria e a volúpia proporcionam prazer e um bem situacional, a opção mais humanamente lógica é preferir o princípio do prazer (Lustprinzip, em alemão) que a dor e a realidade – a menos que se faça apologia do masoquismo.

 

A falácia sobre prazer, como um dos componentes ou ingredientes da lascívia, da luxúria e da volúpia, não corresponde às catástrofes individuais e coletivas, palpáveis e evidenciáveis do império desses ingredientes. A História e a Historiografia têm mais contribuições nesse sentido do que a Filosofia, a Antropologia, a Ética e Psicologia.

 

  1.  Conclusão

O estudo e a reflexão sobre as deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia e suas ações no processo formativo da masculinidade subsidiam os esclarecimentos sobre a constituição da persona dos homens, com os produtos deteriorados de uma Sombra rejeitada, ocultada, não integrada na consciência para as suas potenciais criações individuantes. Por tais constituição e produtos, indivíduos e povos fabricam mantos de hipocrisias e iniquidades, simbolizados no manto do personagem bíblico Noé.

 

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NOTAS

1- O texto compõe capítulo da obra inédita intitulada “Vingança da Serpente” e resulta do Projeto de Pesquisa “Corpoanálise da identidade sexual do homem: estudos de Psicomitologia e Enfeermagem”, cadastrado na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo, sob o número 9174/2018. O subprojeto de Iniciação Científica na modalidade PIBIC é desenvolvido junto com a graduanda em Enfermagem Alícia Merícia Mendes Figueiredo. O texto presente refere-se a Subprojeto de Projeto, desenvolvido no âmbito do Programa Institucional de Inicial Científica, na modalidade PIBIC 2019/2020 e sob o título “Os padrões caracterológicos de cuidado e de não- cuidado do personagem bíblico Noé na formação do homem e da paternidade”.

2- Consultar: Juízes (capítulo 20, versículo 6); Jeremias (capítulo 13, versículo 27); Ezequiel (capítulo 16, versículos 15,

27, 43, 58; capítulo 22, versículos 9 e11); Oséias (capítulo 6, versículo 9).

3- Tais significações para algeseia aparecem como fornicação e adultério (Marcos, capítulo 7, versículo 22; Romanos, capítulo 13, versículo 13; primeira carta aos Coríntios, capítulo 6, versículo 18), sensualidade desenfreada (segunda carta aos Coríntios, capítulo 12, versículo 21; Gálatas, capítulo 5, versículo 19; Efésios, capítulo 4, versículo 19), intemperança e desregramento (primeira carta de Pedro, capítulo 4, versículo 3; Judas, capítulo 4), sensualidade (segunda carta de Pedro, capítulo 2, versículo 2; capítulo 7, versículo 18).

4- Mais adiante se faz um breve resumo da história mítica de Eros e Psiquê.

5- No Primeiro Testamento, é correlata à idolatria porque os ritos pagãos incluíam atos sexuais. No Segundo Testamento, procede da palavra grega porneia, incluindo prostituição, incesto, adultério e toda foma de luxúria.

6- Concretamente, significa escorregadio. Em sentido figurado, significa: ausência de força, de rigidez; instável; relaxado.

7- Injustamente denominada “deusa da sujeira” ou da imundície, na verdade era purificava as imundícies morais dos humanos. Porque absorvia as imoralidades do comportamento humano, apresentava-se em quatro fases: na juventude era deusa da distração e da despreocupação; na idade adulta, era deusa do jogo e da incerteza; na meia-idade, absorvia as imoralidades humanas; na velhice, era predadora de jovens.

8- Consultar: HURWTZ, Siegmund. Lilith, a primeira Eva. Fonte Editorial, 2018; KOLTUV, Barbara Black Lilith: a primeira Eva. O resgate do lado sombrio do feminino universal. Cultrix, 2017; PIRES, Valéria Fabrizi. Lilith e Eva: imagens arquetípicas da mulher na atualidade. Summus Editorial, 2008.

9- São animais invertebrados (vermes), o corpo longo e achatado pode dividir-se em duas metades iguais, têm sistema digestório incompleto ou ausente, a respiração é cutânea e não possuem sistema circulatório. Planária, Schistosoma e Taenia solium são três exemplos distintos de platelmintos.

10- Distribuídos em 15 mil espécies, são animais invertebrados, caracterizados por corpo mole, alongado, cilíndrico e dividido em anéis. Minhocas, sanguessugas e poliquetas são exemplos de anelídeos. Muitos dos anelídeos alimentam-se de matéria orgânica em decomposição e outros tantos de sangue de outros animais.

 

 

 

 

Carlos Fernandes
Enviado por Carlos Fernandes em 08/02/2024


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Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr