A condição e a situação humana no Brasil da atualidade têm-me conduzido à reflexão sobre História, Historicismo, Historismo e Historiografia, sobretudo influenciado pela tradição de pensamento historista de Wilhelm Guillermo Dilthey (1833-1911) para o qual vida é vivência a ser desenvolvida (=diferenciada e aperfeiçoada) em experiência vivida no mundo histórico-sócio-humano: tudo o que se refere a esse mundo é a um só tempo história antropologia psicologia.
O estudo e a compreensão dessa vivência e experiência vivida histórica, antropológica, psicológica são realizações da Hermenêutica.
No pensamento diltheyano, Hermenêutica é ciência filosófica e metodológica não separadora de história antropologia psicologia qualquer seriação ou separação constitui erro e arbitrariedade quanto ao mundo histórico-sócio-humano.
A seriação, fragmentação ou especialização dos saberes e das práticas respondem tanto por erros e arbitrariedades quanto pelas várias e geralmente incomunicáveis concepções de história: a concepção materialista, inspirada ou fundada por Karl Marx; a concepção dialética e aqui é necessário explicitar a qual concepção de dialética nos referimos; a concepção naturalista, também chamada de socioevolutiva e da qual o positivismo é uma das expressões; a concepção historicista, criadora da concepção de história universal; a concepção fenomenológica, estratificada nas inúmeras escolas de concepções psicológica, psicanalítica, existencialista; a concepção historista e aqui também é necessário explicitar a qual concepção de historismo me refiro; a concepção hermenêutica, fundada no Historismo de Dilthey.
Por detrás de cada uma das possíveis concepções de história estão as concepções de mundo dos seus criadores e que, em momentos históricos variados, podem ser legalizadas, hegemonizadas (globalizadas, mundializadas) ou negligenciadas, construindo ou coadjuvando a construção de tipos de mundo: entre tantos outros ainda desconhecidos, conhecemos os tipos de mundo europeu, de mundo asiático, de mundo africano, estamos investindo no conhecimento do mundo indígena. Não são tipos de mundo universais; apenas tipos de mundo, formados num mar empírico de história.
Ainda com o pensamento historista e diltheyano, mundo humano é mar empírico da história desenvolvido num tecido emaranhado de história aonde nada é universal ou particular, no qual nenhum movimento ascende ou descende, regressa ou progressa: nesse mar não há dedução nem indução, mas a vida dada, demonstrada por si mesma –a vivência posteriormente desenvolvida em experiência vivida.
No mar empírico da história e em seu tecido emaranhado de história a que se convencionou chamar de realidade histórico-sócio-humana ou sociedade, a força e o movimento são de corso e ricorso, de sequência e recorrência, de fluxo e refluxo: é o que, entendendo a vida histórica das nações, conclui Giambattista Vico (1668-1744) em sua Ciência Nova.
Não se trata de ciclo, espiral, escada, círculo nem de níveis, dimensões, patamares ou camadas mas de tecido emaranhado, uma teia, uma rede de vivências e revivências históricas: é o que, compreendendo a vida por ela mesma, uma vivência e não um pensamento, conclui Guillermo Dilthey.
A seqüência e a recorrência viconianas correspondem, respectivamente, à compreensão diltheyana da lei de desenvolvimento, ou seja, aperfeiçoamento e diferenciação e da revivência histórica. Essa revivência histórica é o alfa e o ômega da racionalidade hermenêutica e não significa viver de novo o acontecido: "reviver é criar na linha do acontecer". Na referência do pensamento judaico é a compreensão de que não há nada de novo debaixo do sol; na referência do pensamento socrático é a compreensão de que viver é reviver; na referência do pensamento junguiana é a compreensão de que a psique humana traz em si a sua história pré-humana e humana das raças. Em suma, passado é um conceito arbitrário: interpretando o pensamento de Dilthey, Parella registra que a vida é uma conexão de vivências na qual cada vivência particular vai adquirindo seu significado devido à sua posição na conexão total de vivências; nessa conexão de vivências tempo é a continuidade do presente que se faz passado e o futuro que se faz presente.
A diferença fundamental entre os sistemas viconiano e diltheyano de história é que, para o primeiro, os mitos e as línguas dos povos são os instrumentos para entender o mundo das nações e, para o segundo, esse instrumento de compreensão do mundo histórico está nos sistemas culturais e nos sistemas de organização interna e externa da sociedade. Se não nos esquecermos de que a Mitologia ou ciência que estuda os mitos e Lingüística são sistemas culturais, as diferenças conceptuais entre Vico e Dilthey não são substanciais.
História é o mar da empiria em que se realiza a vida no "curso do tempo e na simultaneidade".2:236 Para Vico é tudo o que compõe o mundo civil ou das nações e para Dilthey é o que compõe o mundo da vida ou histórico.
Na Historística , utilizo a expressão mundo histórico ao invés de seus sinônimos mundo dos povos e das nações ou mundo civil, realidade humano-sócio-histórica, sociedade.
O conceito de trajetórias e memórias de corpo, formadas e desenvolvidas no mundo histórico, introduz a primeira discussão historística: as diferenças conceituais, políticas e operacionais entre historicismo, historismo, história e historiografia.
Historicismo, também chamado de história oficial ou história total, tanto é a narrativa descritiva de selecionadas realizações da vida de determinadas pessoas, povos e nações no curso do tempo e na simultaneidade; é um paradigma de pensamento e de construção da história movido segundo a concepção de mundo de ciência normal – expressão conceitual de Thomas Kuhn. Diante de todas as evidências históricas da força destrutiva do progresso humano dessa ciência normal, apesar da sua força de desenvolvimento técnico-econômico, proponho os conceitos de ciência sustentável e de ciência insustentável.
A ciência insustentável é o modelo de ciência supostamente racional, positiva e de herança cartesiano-positivista: diante dela o historicismo narra e descreve em linguagem socioevolutiva e, preferencialmente, com métodos, procedimentos e técnicas estatístico-matemáticas os seus feitos heróicos, ocultando incertezas e ignorâncias, negando e condenando a imanente condição humana de insegurança e de fragilidade.
Pelo menos dois equívocos do historicismo, reprodutor do paradigma de ciência insustentável: as megarrativas totalizantes, geralmente limitadas a atos de estadistas, homens de governo, religiosos ou fazedores de qualquer coisa que interessa ao status quo; as micronarrativas intermináveis e sem conexão com a totalidade das vivências das quais procedem, antes subestimadas e agora superestimadas, num empirismo locorregional ou empirismo fenomenológico da chamada micro-história.
Tanto para as megarrativas quanto para as micronarrativas, as investigações historicistas rotuladas de pesquisa histórica seguem métodos, procedimentos e técnicas da ciência insustentável, principalmente fundados no dogma da coleta e do tratamento de dados: 1)definição, justificativa e delimitação temática; 2)objetivos da pesquisa; 3)marcos teóricos, conceituais, revisão de literatura e as hipóteses de trabalho; 4) escolha do método e das técnicas, coleta ou levantamento de dados; 5)a crítica e a validação dos dados; 6) a análise e interpretação dos dados!
Contrário a essa concepção de pesquisa histórica e sua linguagem mecânico-experimental está o Historismo e a pesquisa historista.
Historismo é revolução cultural produzida por Guillermo Dilthey dentro da Escola Histórica Alemã por ele fundada com o lançamento em 1883, na Alemanha, de sua obra Einleitung in die Geisteswissenschaften ("Introdução às Ciências do Espírito"), traduzida e publicada em França, no ano de 1942 e em dois volumes, com o nome de Introduction a l'étude des sciences humaines ("Introdução ao estudo das Ciências Humanas"), também traduzida e publicada em língua espanhola com o nome de Introducción a las ciencias del espíritu, em 1945; esta Introdução, hoje volume I, em alemão, das Obras Completas de Dilthey, é obra de antropologia do homem e da mulher históricos, ou seja, antropologia psico-histórica.
Nesse contexto, a Escola dos Anais dos anos de 1920, conquanto seja um estrito movimento francês e do pensamento francês, e a batizada nova história dos ensaios de Jacques Le Goff em 1978, são um eco tardio do Historismo alemão: a versão francesa e positivista do Historismo alemão pode ser detectável no pensamento durkheimiano de Lucien Febvre e Marc Bloch com a sua revista originária e aglutinadora do pensamento da Escola dos Anais, a Anais: economia, sociedade, civilização, editada a partir de 1929.
A revolução cultural produzida pelo Historismo desloca o lugar ocupado pela Filosofia antes do positivismo e, coexistindo com o movimento do Neokantismo, impede que esta volta a Immmanuel Kant seja a reatualização da Filosofia Transcendental e a ela contrapõe a Filosofia Crítica da História; ao mesmo tempo, é reação cultural contra a Filosofia da História, a metafísica do positivismo e sua pretensão de unidade das ciências sob o comando da Sociologia. Anteriormente, Giambattista Vico (1668-1744) erguera a Filosofia Estética da História, insurgindo-se contra os esquemas do pensamento cartesiano.
Filosofia Crítica da História, cuja tese fundamental é de que o pensamento, o conhecimento e o entendimento formam-se e se desenvolvem no mundo histórico e, portanto, não podem ir além da vida histórica,2 é a formulação em sistema do que Guillermo Dilthey faz para superar a Filosofia Transcendental kantiana, a Filosofia da História, o Positivismo e todo cientismo fundados na Metafísica.
Em suma, o Historismo declara o fim da Metafísica, erguida de Sócrates-Platão-Aristóteles à Augusto Comte: sem negar a construção dessa Metafísica e o seu papel amadurecedor do pensamento europeu ocidental (=a metáfora para significar mundo platônico-aristotélico) quanto ao mundo empírico-experimental, o Historismo limita esse mundo ao estudo dos nexos causais da natureza ou dos fenômenos pelas Ciências da Natureza ou Experimentais e congrega o estudo dos nexos do mundo histórico e não fenômenico ao campo da Ciências do Espírito ou Experienciais:
-à crítica da razão pura Guillermo Dilthey contrapõe a crítica da razão histórica para análise hermenêutica das condições do conhecimento na consciência histórica e, com esse ato historista, ergue a Epistemologia Histórica;
-à crítica da razão teórica contrapõe a crítica histórica da razão para análise hermenêutica das condições históricas do conhecimento e, com esse ato historista, ergue a Filosofia da Vida, da Experiência, da Empiria – o sistema filosófico superador do racionalismo, do empirismo e do transcendentalismo;
-à crítica da razão prática contrapõe a autognose histórica para análise hermenêutica das condições da consciência histórica no conhecimento e, com esse ato historista, ergue a Psico-história –uma psicologia analítica e descritiva do homem e da mulher históricos.
Para o erguimento da Psico-história, fundada na autognose histórica, Guillermo Dilthey se utiliza de alguns objetos da Estética e, de modo tão aprofundado que, por longo tempo, foi visto exclusivamente como historiador do espírito das manifestações criadoras, ou seja, historiador da cultura (kultur): a Poética, a Biografia, a Arte, a Literatura. E, com isso, funda uma concepção historista de Estética que se desenvolverá com o nome diltheyano de Ética sociofilosófica, a um só tempo Filosofia Estética da Ética –a estética ética da experiência moral- e Filosofia Ética da Estética – a ética estética da moral experienciada: sua obra sobre ética e os seus ensaios sobre as concepções poética e filosófica de mundo caminham naquela direção.
Ratificando: crítica da razão histórica é consciência histórica quando tem por referência analítico-descritiva as expressões da vivência, também nomeadas por Guillermo Dilthey de manifestações ou concretizações da vida, espírito objetivo; é autognose histórica quando tem por referência analítico-descritiva a própria consciência histórica.
Num parêntese explicativo, do conceito diltheyano de autognose histórica fundadora da Psicologia Histórica, posteriormente o suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) ergueu o método construtivo da sua Psicologia Analítica para a teoria histórico-racial da psique humana; o austríaco Sigmund Freud (1856-1939) ergueu o conceito e a prática metodológica de psicanálise para sua teoria psicossexual da personalidade e o alemão Eric Hombourger Ericson (1902-1994) ergueu o seu método denominado psico-história para a teoria psicossocial da personalidade e do comportamento humano: se a hermenêutica para Dilthey interconecta antropologia psicologia história, o método ericsoniano de psico-história interconecta psicanálise e história, o método analítico junguiano interconecta Dilthey e Giambattista Vico , o método psicanalítico psiquiatria e sexologia.
Todos esses métodos e técnicas, independente de suas oposições teóricas, são fundamentalmente processos analíticos da Hermenêutica, erguida por Guillermo Dilthey como ciência filosófica e ciência metodológica básica e universal das Ciências Experienciais em geral e do Historismo em particular.
Talvez pareça exagero mas, pode-se dizer que Jung faz historismo dos complexos e dos sonhos, Freud faz historismo de expressões do desejo sexual e dos supostos estágios do desenvolvimento psicossexual, Ericson faz historismo dos supostos estágios do desenvolvimento psicossocial. Nenhum deles, porém, mantém o fundamento diltheyano do historismo: a pessoa humana, criadora da história e da sociedade, é uma totalidade histórica, a experiência humana é uma totalidade histórica e, portanto, filosofias, epistemologias e ciências devem fundar-se nessa totalidade histórica não fragmentável e inacessível aos métodos, procedimentos, abordagens e técnicas das Ciências Experimentais.
Duas reafirmações básicas no pensamento historístico: crítica da razão histórica utilizada como técnica de pesquisa é o desligamento com todos os chamados métodos de abordagem e de procedimento e de todas as técnicas de pesquisa utilizadas no campo das Ciências Experimentais e incompatíveis com o campo das Ciências Experienciais; minha denominação de método historistico quer diferenciá-lo do método histórico preso à concepção de história como investigação de acontecimentos, processos e instituições do mundo histórico do passado com o objetivo de verificação de suas influências no mundo histórico atual.
O marco teórico da Historística é o Historismo, sistema criado por Guillermo Dilthey para superar o naturalismo, a filosofia da história e o (neo)kantismo, é a hermenêutica do espírito do tempo dentro do tecido emaranhado de história em que a vida se realiza no curso do tempo e na simultaneidade.
Espírito do tempo é fato histórico e refere-se ao novo objeto de investigação criado por Guillermo Dilthey com o qual institui o horizonte investigativo do historista.
Hermenêutica do espírito do tempo significa conhecimento, compreensão, interpretação, entendimento e esclarecimento do essencial e do necessário naquele mar da empiria tecido no emaranhado do sentir pensar querer humanos, num momento histórico definido e sua conexão com o espírito de todos os tempos.
A descrição analítica dos nexos do tecido emaranhado de história é historiografia.
Historiografia é crítica filosófica da história, ou seja, a descrição analítico-crítica do que pessoas vão fazendo, pensando, querendo no curso do tempo e na simultaneidade.
Diante do mar da empiria (a própria história), o historista conhece e compreende o tecido emaranhado de história em que aquele mar da empiria se realiza; desse tecido emaranhado de história interpreta e entende o espírito do tempo que o tece (historismo) numa descrição analítica dos nexos naquele espírito do tempo (historiografia). Essa é a minha síntese das ações do historista à luz do pensamento diltheyano.
No mar da empiria formado de vivências e experiências humanas num tecido emaranhado de história os nexos se estabelecem por ações, relações e padrões de cuidado e de não cuidado; a própria ação, atividade e tarefa do historista e do historiógrafo do cuidado compõem uma ação, uma atividade, uma tarefa de cuidado ou de não cuidado com o mar histórico da empiria e sua objetivação no curso do tempo.
Ao mar da empiria formado de vivência e experiências humanas e a sua objetivação histórica denomino, respectivamente, trajetórias e memórias de corpo.
Trajetórias de corpo são as vivências e experiências de pessoas, comunidades, sociedades e povos em sua trajetória de vida; reafirmando o fato de que não existe vida e condição humana sem corpo, aquelas trajetórias de vida são trajetórias de corpo.
Memórias de corpo são as fixações das vivências e experiências de pessoas e sociedades, desde um gesto até grandes objetividades do pensamento tais como os sistemas culturais e sistemas de organização interna e externa da sociedade.
O conceito por mim criado de trajetórias e memórias de corpo refere-se aos fatos históricos das unidades de vida particularmente estudáveis e pesquisáveis pelos terapeutas do corpo e do cuidado; na racionalidade histórico-historista (ou historística) e em linguagem diltheyana, trajetórias e memórias de corpo são, respectivamente, vivência e expressão da vivência.
Do ponto de vista conceitual, o conceito diltheyano de unidade de vida ou unidade psicofísica de vida supera as noções e os conceitos de sujeito, objeto, coisas, fenômenos, dados, amostras.
Quando evoco a tradição historista de pensamento diltheyano quero afirmar que a formação étnica locorregional do Brasil é mar empírico da história, profundamente abalado e alterado nos processos interétnicos; nesse mar da empiria, um tecido interétnico emaranhado de história de cuidado e de não cuidado se desenvolve nas trajetórias e memórias de corpo de todos os povos nativos e não nativos, formadores dos Brasis contemporâneos.
Em síntese, qualquer sistema cultural, sistema de organização externa e de organização interna na sociedade brasileira deverá realizar crítica da razão histórica do Brasil, sem a qual se perpetuam as iniqüidades, as ineficiências, as inefetividades, particularmente no campo da Administração, da Política, da Saúde, da Educação públicas.
O campo da Antropologia do Cuidado quer possibilitar aquela crítica da razão histórica do Brasil e, nos limites de sua abrangência, explicitar as seqüências e as recorrências das expressões de cuidado e de não cuidado no curso da história brasileira: para isso, o mar da empiria e o tecido emaranhado de história dos povos brasileiros precisam ser (re)conhecidos. Essa é a tarefa não realizada pela Enfermagem Moderna e a sua impossibilidade de realização ainda mesmo se o quiser pela inexistência histórica de bases; daí, reafirmo a necessidade epistemológica da Nova Enfermagem fundada na Ciência do Cuidado.
Conhecer, compreender, conviver, considerar e contemplar a história de cuidado e de não cuidado das trajetórias e memórias de corpo no Brasil é constituir a própria Arte do Cuidado e de Não Cuidado: desse mar e tecido de trajetórias e memórias deveriam ter sido compostas as bases teóricas e metodológicas para a constituição do Sistema Único de Saúde (SUS) e, na atualidade, para a formulação e implementação de quaisquer Políticas Públicas; por isso mesmo estou plenamente convencido de que apenas uma racionalidade histórico-historista ou hermenêutica e uma crítica da razão histórica são capazes de promover aqueles 5Cês para a modificação da condição e da situação humana no país, sem os quais os Princípios e as Diretrizes do SUS jamais farão parte da formação sociocultural dos povos brasileiros.
Das trajetórias e memórias de corpo no Brasil devem se formar e se desenvolver as filosofias, as ciências, as políticas do país: independente da necessidade dialógica entre povos, nações e sistemas culturais, é distorção histórica, anarquia epistemológica e erro pedagógico transliterar, por exemplo, princípios e diretrizes da medicina social inglesa, criada na trajetória e memória do povo inglês, do estruturalismo francês, criado na trajetória e memória do francês, e da sociologia política italiana, criado na trajetória e memória do povo italiano, para fazer política e construir pública sanitária no Brasil; mais um exemplo de aberração epistemológica é perpetuar discussão e consumir recursos com estudos e pesquisas sobre estratificação de classes e ainda segundo a lógica marxiana dentro do evolucionismo suposto do materialismo histórico dialético, negligenciando ou desconhecendo que a sociedade brasileira, ao contrário das sociedades européia e norte-americana, se funda e se desenvolve sobre estratificação étnica, geradora de todas as possíveis estratificações, inclusive a estratificação cognitiva. Nesse sentido, Dilthey demonstra pela pesquisa histórico-historista ou hermenêutica que o princípio dialético marxista da contradição e a suposta conexão saída da tese, da antítese e da síntese constitui deformação e caricaturização das lutas de forças entre poderes intrassociais e intersociais contrapostos nos quais se desenvolve o mundo histórico em sua pluralidade de aspectos.
Ainda num parêntese explicativo, o conceito de anarquia epistemológica é fundamental por nascer da análise diltheyana dos princípios e conseqüências do positivismo ou do paradigma cartesiano-positivista quando aplicados às ciências experienciais. O princípio cartesiano-positivista da crescente até à absoluta especialização do saber como suposta expressão racional da diferenciação e evolução do saber humano gerou no século XIX e subseqüentes a anarquia epistemológica, assim caracterizada: "os sistemas acham-se atravessados de contradições e de conclusões falsas; têm selecionado um aspecto das coisas e eliminado os demais; mutilam o vivo [e,] em lugar de ver as coisas como são, [ocultam suas contradições e falsidades] por detrás de uma mera seriação de sistemas ou detrás de uniões lógicas artificiosas extrínsecas".9:31 No Brasil, com a institucionalização do princípio da transliteração dos sistemas culturais europeus e norte-americanos, a anarquia epistemológica têm perpetuado deformações e caricaturizações da realidade humano-sócio-histórica fazendo com que profissões e profissionais sejam dispositivos fora de lugar.
Por tais transliterações, geradoras de deformações e caricaturização do mundo histórico brasileiro, as leis no Brasil não formam nem transformam a nossa realidade política, sanitária e epidemiológica, tanto quanto profissões e profissionais funcionam, repito, como dispositivos fora de lugar: as trajetórias e memórias de corpo dos povos brasileiros, formadoras do mar empírico da história num tecido emaranhado de história, precisam ser estudadas e não condenadas, desqualificadas, elipsadas ou abordadas segundo a lógica naturalista em seu clímax no positivismo com a qual se fundam as ciências sociais e os seus pilares teóricos - a fenomenologia, o funcional-estruturalismo e o marxismo.
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