GERALDINA PEREIRA FERNANDES (*23.Junho.1913; +23.Julho.2002)
Textos

O corpo é expressão mnêmica da história formada por ele mesmo; é memória étnica da carne, escritura que faz a história, forma a comunidade, expressão e reflexão da história e de comunidades escrituradas por ele mesmo.

As comunidades e as sociedades não estão impressas no corpo; expressam o corpo que as criam e é por isto que comunidades, sociedades, civilizações são memórias de corpo.

O corpo é memória étnica que faz a história; não é representação da história porque, ao contrário, é expressão formadora da mesma: a história é a objetivação de memórias de corpo.
 
Corpo é carne-memória étnica do humano, vivo, pulsante, carne-sangue, origem e fim da história criada.

Nasce uma criança; ou antes, concebe-se uma vida. Da concepção, o feto que se forma já traz a memória étnica da carne (humana) que o concebeu, gerou, formou e deu-lhe nascimento.
 
A civilização judaica, antes da época mosaica, traduz o que tenho expressado.

No Gênesis, capítulo dois e versículo vinte e três, a civilização judaica registra a fala do segundo homem, o homem edênico, diferente do homem primordial ou pré-edênico: “Esta sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne!”. 

O que identifica o homem e a mulher é a carne.

O segundo homem, o edênico, não se alegra dizendo que a mulher é espírito de seu espírito, mente de sua mente, mas “carne de sua carne”. Essa mulher não foi criada por Iahweh: ela foi MODELADA: “Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem” (GÊNESIS, 2:22). O homem continha a mulher nele mesmo pois é de sua costela que Iahweh MODELA aquela mulher: lembrando o conceito de valor agregado, Iahweh retira o elemento primário, simbolizado na costela, e modela um elemento novo, diferente do outro, mas essencialmente igual.

O ato de modelar, sem dúvida, pode ser considerado um ato estético de cuidado: emerge algo novo da modelagem, do processo de modelagem, de criação, de cuidado.
 
Mas o essencial dessas questões é o valor dado à carne: os animais, os vegetais, as feras não eram “carne da carne” do homem. A mulher e o homem, carne da carne um do outro, unem-se e, na linguagem do Gênesis (2:24),  “se tornam uma só carne”. Não há aqui o sentido da carne a ser mortificada, subjugada. Não há oposição de corpo e carne. Ao contrário, carne corpo aparecem como unidade, indistinguíveis. O homem é carne e de sua carne modela-se a mulher.

O conceito de pecado original pela carne é uma elaboração mental tardia, posterior.

O pecado original da civilização judaica é a desobediência à ordem para não comer um fruto de determinada árvore: não é pecado da carne, mas da desobediência.

Na civilização judaica o sexo, a união carnal e a reprodução foram, antes de tudo, estimulados e necessários desde a criação do homem e da mulher pré-edênicos, primordiais: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou. Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a’. ”(GÊNESIS, 1: 27-8)

Sem se ater a quaisquer considerações de ordem teológica ou teológico-moral, o registro bíblico da cultura judaica, tal como está traduzido, fala da CARNE, uma carne que somos e que não é desprestigiada, inferiorizada, oposicionada, hierarquizada, dicotomizada a um corpo, uma mente, espírito ou razão.

Carne, na Antigüidade judaica, é expressão do que é homem e mulher, carnes um do outro.

A alma (= a memória) dessa carne que somos está simbolizada no sangue, sem haver dicotomias ou graus de importância: trata-se de carne viva, de memória étnica.

O homem e a mulher são carnes na civilização judaica: não há proibições quanto à alimentação de qualquer tipo de carne: “Deus abençoou Noé e seus filhos, e lhes disse: tudo o que se move e possui a vida vos servirá de alimento”.

A proibição é comer carne viva, ou seja, carne-memória étnica, carne-sangue: “Não comereis a carne com sua alma, isto é, o sangue. Pedirei contas, porém, do sangue de cada um de vós”.

A proibição judaica quanto a comer carne viva ou derramar a alma da carne – o sangue – traduz o que estou tentando aclarar sobre o corpo vivo que somos – memória étnica, memória histórica.

Na Ciência do Cuidado, o corpo é expressão mnêmica, ou seja, escritura que faz a história, forma história, expressa em si a própria história e cultura que ele mesmo formou.

Expressão tácita de si mesmo e da comunidade étnica que historicamente formou, o corpo é forma estrutural, primeira e mais completa de conhecimento.

Alma-sangue-memória étnica diferenciam a carne humana da carne animal; portanto, alma-sangue-carne-ethos são uma só coisa.

Incorreta é a expressão corpo expressivo ou expressão corporal, corpo de representação ou representações de corpo. Corpo é corpo: total e expressivamente corpo; sem ser espaço é memória étnica, fonte de conhecimento e expressividade.

A memória étnica não é locus de expressão nem da expressão: é totalidade expressiva, imediata, permanente, sempre viva, presente, histórica, social.

Onde há humano há corpo e onde há corpo há memória étnica.

Outra concepção de corpo, enraizada na cultura brasileira, é a concepção expressiva da civilização indígena para quem o corpo do homem, da mulher e de tudo quanto existe é desdobramento do corpo divino; não é criação nem modelagem mas desdobramento e daí o cuidado e o respeito a tudo quanto vive e existe. Não se trata de concepção mágico-religiosa, antropomórfica ou politeísta de corpo ou da divindade: a questão é que na Filosofia Indígena tudo é divinamente humanizado e humanamente divino porque tudo é desdobramento da divindade.

Carlos Fernandes
Enviado por Carlos Fernandes em 11/04/2009
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