GERALDINA PEREIRA FERNANDES (*23.Junho.1913; +23.Julho.2002)
Dr. Carlos Fernandes
Membro da Associação Brasileira de Enfermagem Forense - ABEFORENSE
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Textos

Para o teórico das ciências, Thomas S. Kuhn, ciência ou pesquisa normal é o tipo de saber científico desenvolvido por acumulação, ou seja, fundado em pesquisas anteriormente validadas e reconhecidas por uma determinada comunidade científica, durante um período de tempo mais ou menos longo[1]. O limite dessa acumulação é a construção de paradigmas ou dogmas do pensamento científico hegemonizado: para mais amplos avanços é necessário a quebra e o fim de paradigmas, responsáveis pelas revoluções científicas ou revoluções de um determinado tipo de pensamento e de saber coroado de "científico". Sem tais revoluções existiria a estagnação do saber.
Para Kuhn "paradigmas são as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência."[1:13]

Em suma, para Kuhn o desenvolvimento da ciência não se dá por acumulação descobertas e de invenções individuais mas por esgotamento e quebra de paradigmas anteriormente validados e aceitos: eis o que são Revoluções Científicas.[1] Gaston Bachelard falará em rupturas epistemológicas.

O processo não linear de acumulação de saberes daria conta do que Michel Foucault chama de Arqueologia do Saber, dentro da qual se criam formações discursivas justificadoras das Ordens do Discurso[2] – em nosso caso, o discurso científico ou, mais adequadamente, os discursos científicos.

Para Foucault, formações discursivas são "conjuntos de enunciados identificáveis por seguirem um mesmo sistema de regras, historicamente determinadas."[3:69] O conceito foucaultiano de Formações discursivas quer superar os conceitos tradicionais de teoria, ideologia, ciência.

O estudo daquela arqueologia do saber tornou-se um método de pesquisa dentro do qual Foucault instituiu o conceito de microfísica do poder.

Formações Discursivas, justificadoras dos saberes e das práticas científicas, são expressões de poderes sociais, políticos, econômicos, religiosos, culturais, morais, históricos, ideológicos; entretanto, tal caráter sociopolítico das formações discursivas foi mais claramente explicitado e fundamento com Michel Pêcheux, marxista altusseriano.
Para Pêcheux, toda formação social traduz determinada relação entre classes sociais e traz em si "posições políticas e ideológicas que não são obra de indivíduos, mas se organizam em formações, mantendo entre si relações de antagonismo, de aliança ou de domínio".[4:102]

Em Pêcheux, as formações discursivas procedem das formações sociais que, por sua vez, são formações ideológicas. Tais formações ideológicas incluem-se uma ou várias formações discursivas interligadas determinantes do que pode e o do que deve ser dito sob a forma de um discurso, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, de uma prática científica... E, tudo isso, a partir de uma determinada posição numa dada conjuntura.[4]

Diante de todas as evidências históricas da força paralisante do progresso técnico e não necessariamente humano da ciência normal, apesar da sua força econômica, e das ordens do discurso de um determinado tipo de pensamento, proponho os conceitos de ciência sustentável e de ciência insustentável.

Vale lembrar que sustentável e sustentabilidade estão no centro dos conceitos de desenvolvimento sustentável (ou seja, o tipo de desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades) e de sustentabilidade ampliada (fundada nos aspectos integrais de desenvolvimento ecológico, econômico, social, cultural, político, institucional). Todo tipo de desenvolvimento provocador de desequilíbrios socioambientais, tais como degradação, contaminação ambiental, desperdício, pobreza e injustiça social, é qualificado de insustentável. A construção e o desenvolvimento da pesquisa e do saber científicos, portanto, poderão ser sustentáveis ou insustentáveis.

A ciência insustentável é o modelo de ciência metafísico-racional, de herança cartesiano-positivista. Metafísica é o tipo de conhecimento humano, e portanto histórico – social - político, em que uma idéia, visão e concepção da vida e do mundo são arbitrariamente hegemonizadas e erguidas ao estatuto de universais; assim sendo, essa universalidade é a-histórica, a-social, supostamente não ideológica e não política. Dito de outro modo e sinteticamente, Metafísica caracteriza o sistema filosófico de pensamento em que uma concepção de mundo e da vida é captada e fundamentada conceptualmente e elevada à categoria de validade universal.

 Dentro dos saberes, dos métodos procedimentos e técnicas estatístico-matemáticas da ciência insustentável existe uma linguagem socioevolutiva de feitos heróicos, ocultadores ou minimizadores de incertezas e ignorâncias, negadores e condenantes da imanente condição humana de insegurança e de fragilidade. Nesse contexto de insustentabilidade nasce o que Foucault chamou de poder biotécnico – característicamente moderno. O poder biotécnico ou biopoder, responsável por uma nova doença que pode ser chamada de tecnofrenia ou tecnomania, é "aquilo que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana": Foucault assim conceitua o biopoder no volume I de sua "História da Sexualidade: a vontade de saber", publicado originalmente com o título Histoire de la Sexualité: I La Volonté de savoir.

Para Foucault, o biopoder ou poder sobre a vida vem sendo desenvolvido a partir do século XVII com duas polarizações principais:[5:131] 1º. Pólo: saberes e práticas transformadoras do corpo em máquina, gerando o poder disciplinar (ou adestramento) sobre o corpo, a ampliação de suas aptidões, a extorsão de suas forças, o crescimento de sua utilidade e docilidade. Desse adestramento ou docilização do corpo para sua utilização econômica nasceram as disciplinas do corpo, ou seja, a Anatomia Política do Corpo Humano;
2º. Pólo: nascendo por volta da metade do século XVIII, essa polarização do biopoder centrou-se no corpo-espécie, transpassado pela mecânica do ser vivo e sendo suporte dos processos biológicos. A proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade são as (pre)ocupações desse biopoder do qual nasce a Biologia Política da População.

Disciplinas do corpo
e regulações da população são os dois pólos do biopoder – "o elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo."[5:132]

 A Biotecnologia e a Engenharia Genética são apenas um desenvolvimento (diferenciação e aperfeiçoamento) técnico do biopoder inaugurado a partir do século XVII europeu: o Projeto Genoma, do século XX, é o coroamento desse projeto biopolítico europeu secular – da Colonização de Terras e de Corpos à Colonização da Vida. Friedrich Nietzsche, anteriormente a Foucault, revelara toda a senhoril ideologia política e econômica do Saber-Fazer filosófico, científico, religioso.

 
A suposta busca da Verdade e os projetos do Iluminismo eram apenas Vontade de Poder – a vontade e a capacidade para o máximo de expropriação, de expatriação e de extrativismo de pessoas, de coletividades, de solos, de subsolos, de faunas, de floras. E, agora, de genomas. Nietzsche diagnosticou essa situação como Vontade de Potência.


Nada mais liquidador de todos os complexos humanos do que a capacidade ou pelo menos a vontade de manipular a genética de todos os seres vivos e criar novos seres: vencer as fronteiras entre as espécies, ou seja, a Transgenia. Nada de novo: é o motivo mitológico de deuses, semideuses e heróis de todas as sociedades antigas, incluindo-se as africanas e as indígenas.


Os homens e deuses da Mitologia Grega, Romana, Hindu, Africana, Indígena são protótipos do que fazem hoje as técnicas biotecnológicas da Engenharia Genética.

Para exemplificar os prodígios da Engenharia Genética particularmente voltada para a modificação de seres vivos e há milênios expressos nas várias  Mitologias de diferentes sociedades, citarei apenas alguns casos da Mitologia Grega em que seres humanos se tornam supra (ou será infra) humanos:
-os Hecatonquiros, filhos de Úrano e Geia, eram gigantes monstruosos e de força descomunal. Com cem braços e cinqüenta cabeças chamavam-se Coto, Briaréu e Gias;
-as Erínias eram filhas do sangue dos testículos de Urano, castrado pelo seu filho Crono - sangue caído sobre Geia. Eram monstros alados, com os cabelos entremeados de serpentes, com chicotes e tochas acesas nas mãos: seus nomes eram Aleto (a que não pára, a incessante, a implacável), Tisífone (a que avalia o homicídio, a vingadora do crime) e Megera (a que inveja, a que tem aversão por);
-os Gigantes eram mortais e foram gerados por Geia para vingar os seus filhos Titãs – lançados por Zeus no Tártaro. Os gigantes eram imensos, descomunalmente fortes, de cabeleira imensa, barba hirsuta, corpo horrendo, com pernas em forma de serpente;
-Nereu é filho de Pontos (o Mar) que por vez é filho de Úrano e Geia. Como todas as divindades do mar, Nereu tem a capacidade de transformar-se tanto em animais quanto em quaisquer outros seres.
-as Harpias, arrebatadoras de crianças e de almas, eram gênios alados e monstros horríveis com o rosto de mulher velha, corpo de abutre, garras aduncas e seios pendentes. Elas pousavam nas iguarias dos banquetes e o cheiro espalhado era de tal modo infecto que impedia a todos de comer: seus nomes eram Aelo (a Borrasca), Ocípete (a Rápida no Vôo), Celeno (a Obscuridade);
-as Gréias ou as Velhas, filhas de Fórcis com sua irmã Ceto, tinham apenas um olho e um dente, viviam no país da Noite onde jamais chegava o sol. Irmãs mais velhas das Górgonas, seus nomes eram Enio, Pefredo e Dino;
-as Górgonas, também filhas de Fórcis com Ceto, eram monstros com cabeça enrolada de serpentes, pressas pontiagudas quais as do javali, mãos de bronze e asas de ouro. Os olhos das Górgonas flamejavam e seu olhar era de tal modo penetrante que transformava em pedra quem as fixasse. Deuses e homens as temiam, com exceção do deus Posídon que engravidou Medusa. Medusa, Ésteno e Euríale eram os nomes das Górgonas. O herói Perseu conseguiu decapitar medusa e do seu pescoço ensangüentado nasceram o cavalo Pégaso e o gigante Crisaor; uma mecha da cabeleira lindíssima da Górgona, apresentada a um exército invasor, era suficiente para afugentá-lo;
-Équidna tinha o corpo metade de jovem mulher, de lindas faces, olhos cintilantes e metade serpente, malhada. De sua união com Tifão gerou os monstros Ortro, Cérbero, Quimera, Leão de Neméia, Hidra de Lerna.
-Cérbero, o cão do Hades, tinha cinqüenta cabeças e voz de bronze, segundo Hesíodo; classicamente, é apresentado com três cabeças, cauda de dragão, pescoço e dorso eriçados de serpentes;
-Hidra era uma descomunal serpente, com várias cabeças (variando de cinco a cem) e cujo hálito pestilento destruía homens, colheitas e rebanhos;
-Quimera era monstro híbrido, com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. Quimera lançava chamas pelas narinas. 

Talvez toda a tradição mítica expresse com o nascimento e o comportamento de tantos monstros os perigos do Biopoder com suas experimentações fora da medida permitida aos humanos. A hýbris, a démesure, o descomedimento, simbolizado no megalomaníaco Ícaro – portador de asas artificiais criadas pelo talento de Dédalo, o mesmo construtor do Labirinto do rei Minos onde se hospedava o horrendo Minotauro comedor de carne humana jovem. O pai de Ícaro o advertiu para que guardasse o meio-termo, o centro, entre as ondas do mar e os raio do sol; o menino insensato ultrapassou o métron e, indo além de si mesmo, se destruiu. 

Cientistas da Engenharia Genética assemelham-se ao artista ateniense Dédalo – engenhoso, talentoso, sutil, modernarmente tido como expressão do tecnocrata abusivo, do intelectual pervertido, de pensamento afetivamente cego, prisioneiro de suas próprias invenções. Artista, arquiteto, escultor e inventor, Dédalo pertencia à família real de Cécrops e tornou-se o mais universalmente reconhecido cientista pelas suas invenções e, portanto, o arquiteto oficial do rei Minos.

Engenharia Genética é uma técnica de criação de organismos geneticamente modificados (OGMs ou cinematograficamente ETs animais ou vegetais) por manipulação genética: Zeus manipulava comportamentos humanos, cientistas contemporâneos manipulam genes.

 
Manipulação Genética na contemporaneidade significa adição, subtração ou destruição, substituição, mutagênese, desativação ou destruição de genes. Todos esses experimentos ainda são rudimentares, insuficientes e inseguros em seu valor sustentável.

 
Dentre as várias e maquiadas incertezas e insuficiências da manipulação genética, estão pelo menos oito das suas únicas certezas e capacidades contra a saúde humana e a natureza: produzir alergias, resistências aos antibióticos, poluição genética, advento de novos vírus por recombinação de vírus "engenheirados" com os já existentes, diminuição e até perda da biodiversidade, surgimento de superpragas, desaparecimento de espécies, potencialização indiscriminada do uso de herbicidas.


E toda a rudimentaridade, insuficiência e insegurança da Engenharia Genética está na sua própria base do conceito de gene com que se fundou e se trabalha – um conceito absolutamente superado de que os genes comandam tudo o que acontece nas células (DNA faz RNA e RNA faz proteína). E tal superação iniciou-se com o denominado DNA junk, ou seja, os 95% de DNA humano sem função ainda conhecida. A palavra junk, nesse contexto, não significa lixo, mas algo posto de lado para alguma finalidade futura não especificada.


É pouco provável que a natureza tenha reservado 5% de DNA útil para a constituição dos genes da espécie e mantido inutilmente 95% desse mesmo DNA: estudos realizados em 2003 indicam que neste DNA junk existem áreas responsáveis pela regulação e desativação dos genes.


Pelos resultados imprevisíveis, incontroláveis, incertos e desnecessários para as pesquisas com Organismos Geneticamente Modificados, a sua utilização na alimentação humana e animal, a sua liberação no meio ambiente deverão ter por fundamento a Bioética com o Princípio da Precaução – base para a Gestão de Riscos:
na Conferência RIO 92 foi proposto formalmente o Princípio da Precaução.
A sua definição, dada em 14 de junho de 1992, foi a seguinte:

O Princípio da Precaução é a garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda identificados. Este Princípio afirma que a ausência da certeza científica formal, a existência de um risco de um dano sério ou irreversível requer a implementação de medidas que possam prever este dano.

O Príncipio da Precaução deve estar acima do marketing e do analfabetismo científico e biotecnológico ainda vigentes no governo, no parlamento, entre cientistas e entre os povos brasileiros: eis a importância do Controle Social (e não da manipulação social) sobre a Engenharia Genética.

 


[1]KUHN, Thomas S. A Estrutura das revoluções científicas. 6. ed. São Paulo: Perspectiva. 2001
[2]FOUCAULT, Michel. L'Odre du discours. Paris: Gallimard. 1971
[3]FOUCAULT, Michel. Archéologie du savoir. Paris: Gallimard. 1964
[4]PÊCHEUX, Michel. L'Inquétude du discours. Paris: Éditions des Cendres. 1990
[5]FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: 1 – a vontade de saber. 13. Ed. Rio de Janeiro: Graal. 1999
Carlos Fernandes
Enviado por Carlos Fernandes em 01/05/2009
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