GERALDINA PEREIRA FERNANDES (*23.Junho.1913; +23.Julho.2002)
Textos


A análise do poema de Cora Coralina, intitulado "Estas Mãos"[i]só pode ser realizada na concepção hermenêutica de análise que não é fragmentação nem disjunção, mas conexão, compaginação, articulação.

Sem nenhuma pretensão de fazer análise, ainda que hermenêutica, do poema das mãos de Cora Coralina, gostaria de acentuar algumas colocações pessoais.
Ao refletir sobre o que caracteriza uma mão de cuidado, vejo um apelo gritante e, as vezes mudo, mas imperativo: antes mesmo de proceder ao necessário ritual da lavagem das mãos e, depois, com as mãos enluvadas quando pertinente, precisamos aprender a olhar para aquelas mãos... São mãos de uma mulher ou de um homem, representantes a um só tempo de todos os homens e mulheres dos Brasis caipira, crioulo, sertanejo, caboclo, sulinos, caiçara – todos estes Brasis herdeiros estruturais do Brasil indígena.

Mãos cavouqueiras que abrem, procuram, vasculham o ventre das coisas, da terra, da vida e do corpo dos outros, mãos inquietas e desacomodadas; portanto, mãos criadoras.
As mãos não enluvadas daquela mão cavouqueira poderia significar o fato de que, ao abrir, procurar, vasculhar o corpo de outrem, não pode ser uma mão fechada, cheia do que os mineiros antigos chamam de "não me toques": o "não me toques" é a mão que se previne do contato, se ausenta do toque, não sente o corpo a ser cuidado porque dele se afasta através de vários instrumentos ou tecnologias.

Pesadas na aparência e, por isso, sem trato e sem carinho, ossudas e grosseiras, a mão cavouqueira é laboriosa.
À semelhança de todas as mãos roceiras e laboriosas, varredoras e cozinheiras, lavadeiras e domésticas, as mãos cavouqueiras nunca calçaram luvas: conforme outra expressão mineira antiga, estas pessoas estão sempre "com a mão na massa" e é possivelmente por isso que estas mãos são pesadas e grosseiras, se fazem assim para proteção e manutenção da vida e, portanto, apesar de grosseiras, não são mãos indelicadas.


O poema de Cora Coralina, cujo nome não me canso de repetir porque é poético e práxico, institui o conceito histórico de mãos de cuidado onde cuidado bem parece aquele "ângulo prometido", a "pedra rejeitada" porque vivemos uma época anti-ética que só fala em Ética, uma época de não cuidado que fala muito em cuidado numa linguagem de não cuidado.

Impressionam-me as caracterizações da antropologia das mãos arquitetada no corpo de Cora Coralina e na qual identifico um labor permanente que é cuidado, não é trabalho no sentido produtivo-capitalista:
mãos cavouqueiras, produtoras de aberturas, de fendas, de espaços;
mãos desenluvadas, cujo sentido pode ser o de não se precaver do labor permanente e dos outros;
mãos varredoras, promotoras de varreduras de tudo quanto pode estar sujo;
mãos cozinheiras, criadoras e mantenedoras da nutrição para a vida;
mãos lavadeiras, labutantes na tarefa de retirar o sujo e manter o limpo;
mãos domésticas, dos espaços dos contextos e dos ambientes íntimos, aconchegantes, do lar que não é mera construção de alvenaria;
mãos remendonas, vigilantes para manter coesões;
mãos econômicas, do essencial e do necessário, não do desperdício nem do acúmulo inútil;
mãos doceiras, íntimas dos frutos da terra para sustentar criaturas;
mãos laboriosas, não promotoras da ociosidade, da desocupação;
mãos de ajuda, mãos de abertura para o outro e com o outro;
mãos da união, mãos da concórdia que também é conforto e segurança;
mãos da bênção, sapientes na coragem de agradecer, de louvar, de reconhecer;
mãos da doação, capazes de dar sem subtrair-se nem subtrair;
mãos raízes, produtoras e mantenedoras de vínculos e de profundidades;
mãos tenazes, da perseverança, da não desistência, da não rendição;
mãos alavancas, que impulsionam, promovem a caminhada, alheias à estagnação;
mãos de semeador.

Quem semeia não tem tempo para a estreiteza de quem apenas colhe e acumula: homens e mulheres do mundo consumidor não são semeadores, são coletores, inclusive de títulos e vantagens acadêmicas.

A civilização do consumo é civilização paleolítica; ao contrário, as mãos de semeador sabem plantar, colher e compartilhar. E, por isso, Ribeiro
[ii] fala dos povos brasileiros indígenas como um paradigma civilizatório estruturado em sua milenar tradição solidária, generosa e comunitária – uma tradição de cuidado.

A tradição de cuidado é solidária, generosa e comunitária; por isso é escândalo e pedra rejeitada pela tradição de consumo, bélica, vicária e ecocida.

Pela antropologia das mãos de cuidado, as possíveis mãos terapêuticas do enfermeiro e da enfermeira aproximam, unem, buscam e mantém raízes, confortam, aliviam, ajudam, acompanham, abençoam, testemunham, são calorosas.

As mãos de cuidado não operam, mas cooperam; cuidam, não tratam; não se isolam, estabelecem vínculos e toques de cuidado promotores de conforto e segurança.

Na Antropologia das Mãos, caberá a nós documentar a cientificidade terapêutica das mãos de cuidado não limitadas (ou contidas) à identificação de sinais, sintomas e signos de desvios de saúde, considerando o peso da noção durkeimiana e médica de desvios.

Tanto as mãos cuidadas quanto as mãos cuidadoras são históricas: expressam a historiografia do cuidado e do não cuidado, irredutível às técnicas semiológicas de palpação e percussão de órgãos.

Nas mãos estão as memórias de corpo das pessoas: basta olhar para elas com aqueles olhos que são habitação e moradia naquilo que se olha. Com esse olhar só poderemos falar numa Semiótica do Cuidado, nascida da vivência e experiência de cuidado entre enfermeiro-enfermeira e pessoa cuidada.


[i]CORALINA Cora. Meu livro de cordel. São Paulo: Global. 1987. p.57-8.
[ii]RIBEIRO, Darcy. O Povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2.ed. 18a. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras. 2001.
Carlos Fernandes
Enviado por Carlos Fernandes em 27/06/2009
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