Para assumir e desempenhar a função de capitão-do-mato homens negros ou mulatos libertos tinham que demonstrar absoluto servilismo aos propósitos da ordem escravocrata; sua função estendia-se por um ano e esse período curto expressava a desconfiança que os escravocratas e as autoridades tinham por seus serviços. Nesse sentido, eram alvos de dois repúdios: dos negros – iguais a eles – e dos seus próprios patrões uma vez que, literalmente, aos capitães-do-mato cabia a realização do "serviço sujo" para manter os seus pares obedientes aos ditames da escravidão.
Estudos sobre os capitães-do-mato apontam maior diversidade étnica dos contratados para o cargo, não restrito a negros libertos mas igualmente a todo homem pobre e livre, ou seja, não escravo.
A função do capitão-do-mato era um ofício de polícia, uma vez que o poder armado do senhor de escravos lhe era entregue para impedir ou controlar movimentos, revoltas e fugas de escravos e capturar negros fugidios. Junto a tais funções, estendia-se a proteção do escravocrata – o seu senhor junto com o seu patrimônio (pessoas e bens). Nesse sentido e na prática, toda a ação do capitão-do-mato era uma ação de polícia.
Os meios de sobrevivência e o prestígio (criminoso) dos capitães-do-mato eram tanto autorizados quanto permanentemente vigiados pelos "senhores" e autoridades locais: o ideal nunca realmente alcançado do capitão-do-mato era estar mais próximo (identificado) com o mundo dos senhores do que com o mundo dos negros (sempre escravos e, mesmo que libertos, sempre tidos por inferiores). Nesse sonho ideal, os capitães-do-mato realmente acreditavam-se distintos tanto dos outros negros (não identidade étnica) quanto dos outros homens pobres livres (não identidade social).
Porque o capitão-do-mato era contratado para servir de policial no próprio local em que morava (na sua Freguesia) ou que passava a residir, ele convivia e conhecia – tanto quanto se distanciava da sua comunidade: qualificativos de "pau-mandado" para a sua presença ainda são usados em todo o Brasil para a ação híbrida de vigia-capanga-jagunço-espião do capitão-do-mato, sobretudo com a figura criada do jagunço, a partir da Monarquia e estensível à República.
Em resumo, os capitães-do-mato eram, a um só tempo, necessários e desprezados pelos seus contratadores e senhores, odiados e temidos pelos seus pares étnicos; socialmente, pertenciam e não pertenciam a sociedade em que viviam.
O servilismo, a bajulação e a dissimulação eram os traços de caráter flutuante e estratégico dos capitães-do-mato; embora com ação policial, pode-se dizer que constituíam a ralé a serviço das autoridades policiais, os que se responsabilizavam pelo "serviço sujo" no âmbito da ação de polícia.
O caráter do povo brasileiro em geral e das autoridades (federais, estaduais e municipais) em particular tem muitas dimensões históricas dos traços de caráter dos capitães-do-mato.
Henrique Dias ( * ? - + 1662) é o protótipo da masculinidade agressiva e da vida de um capitão-do-mato, em ações escravistas bem sucedidas do ponto de vista da ordem dos senhores e das autoridades escravocratas..
Henrique Dias era filho de escravos libertos, pernambucano e negro liberto, considerado o patriarca do exército brasileiro e heroi de guerra nas Batalhas dos Guararapes. Desde 1633, ofereceu-se como voluntário do general Matias de Albuquerque nas batalhas contra os holandeses em Pernambuco; derrotados pelos holandeses, Matias e suas forças armadas, juntamente com Henrique Dias, refugiaram-se na Bahia onde se tornou capitão-do-mato.
Na defesa dos interesses escravocratas dos portugueses, o negro Henrique Dias destacou-se por vários feitos, lutando (para desgraça do Recife em particular e do Brasil em geral) contra os holandeses em Pernambuco, na Bahia, em Alagoas e no Rio Grande do Norte:
- em 15 de julho de 1633, juntamente com 20 negros e outros capitães, defendeu o Engenho São Sebastião, pertencente a Pedro da Cunha de Andrade;
- em 8 de setembro de 1633 participou de combates contra os holandeses no Brasil;
- durante o ano de 1634 esteve envolvido em numerosos combates, ainda contra os holandeses no Brasil;
- em 21 de março de 1635 lutou para retomar o Oiteiro do Conde, no Monte da Conceição;
- participou em 1637 da conquista de Porto Calvo, em Alagoas, quando teve a mão esquerda estralhaçada por um tiro de arcabuz. Porto Calvo foi importante entreposto comercial durante a destruição do Quilombo dos Palmares.
- participou da conquista da terra indígena Goiana (município do litoral de Pernambuco), em janeiro de 1640;
- participou de várias batalhas, entre as quais a de Casa Forte em 17 de agosto de 1645); a de Cunhaú (no Rio Grande do Norte, a partir de 13 de junho de 1645); a do Monte das Tabocas (3 de agosto de 1645); a dos Guararapes (duas batalhas, abril de 1648 e fevereiro de 1649, realizadas no atual município de Jaboatão dos Guararapes, ao sul de Recife).
- participou, em 1646, dos combates de Igaraçu (na ilha de Itamaracá), território originalmente pertencente aos povos indígenas Caeté.
Da Batalha de Casa Forte é interessante a defesa luso-brasileira do engenho de Dona Anna Gonçalves Paes de Azevedo casada em segundas núpcias com o holandês Carlos de Tourlon; na Batalha de Cunhaú ou Massacre de Cunhaú foi igualmente contra os indígenas ali residentes e próximos dos holandeses; da Batalha das Tabocas participaram aproximadamente 500 índios não-Tupis, aliados aos holandeses; na batalha nos Montes dos Guararapes houve igualmente a participação de brasilíndios (nascidos no Brasil, filhos de português e de indígenas), de indígenas e de negros contra qualquer forma de dominação, inclusive a dominação portuguesa.
Na função de capitão-do-mato, Henrique Dias recebeu o cargo de comandante de um grupo militar de aproximadamente 500 negros escravos, denominado Terço de Homens Pretos e Mulatos (ou de Henriques), responsável pela destruição de vários quilombos - principalmente na Bahia.
O Terço (batalhão) de Henrique Dias era formado por negros livres, brasilíndios (mameluco), mulatos, crioulos e demais brasileiros mestiços; escravos também eram aliciados, tanto na condição de emprestados por seus senhores quanto com a promessa de adquirirem liberdade após o sucesso nos combates.
Destruidor de quilombos, perseguidor e assassino de quilombolas, contraditoriamente Henrique Dias era considerado governador dos crioulos, pretos e mulatos do Brasil: o título de governador foi-lhe conferido em 1636, tendo por responsabilidade o comando geral dos negros que serviam ao exército luso-brasileiro.
Com o fim dos combates, as tropas de Henrique Dias eram absorvidas nas milícias (= tropas auxiliares e não regulares).
Apesar de negro, Henrique Dias foi tão fiel na luta contra os negros e tão fiel aos escravocratas portuguesas que recebeu, em 1638, o título de fidalgo e o hábito da Ordem Militar de Cristo.
Com tantos serviços prestados a ordem escravocrata no Brasil, com tantos desserviços aos negros e indígenas e apesar dos títulos de fidalgo e mestre de campo, o capitão-do-mato Henrique Dias morreu em Recife, em junho de 1662, na miséria e sem se furtar da sua condição étnica de negro. E tão miserável que não se tem sequer um retrato autêntico de si mesmo, não se sabe a data de seu nascimento, nem o nome de sua esposa e nem o nome de duas das suas quatro filhas.
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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
MELLO, José Antonio Gonsalves de. Henrique Dias: governador dos crioulos, negros e mulatos do Brasil. Recife: Massangana, 1988.
VASCONCELOS, Everardo. Um herói que a pátria esqueceu. Arquivos, Recife, n. 21/47, p. 13-17, 1952-1965.