Cândido de Souza e Luzia de Souza (dona Lutia) moravam na cidade mineira de Uberaba e numa casa simples à rua Campo Sales, no bairro da Abadia: o casal teve dez filhos naturais além de outros filhos adotivos. Infelizmente, até o momento, tenho apenas o nome de três filhos: João de Souza, Maria Geralda de Souza e um caçula – Alfeu Aparecido de Souza.
Para os familiares e amigos, Alfeu era carinhosamente chamado de Feu.
Na rua Campos Sales ficava o Estádio do Sobradinho (Campo do Atlético); em frente ao Estádio era o sobrado de Jonas Guarda, mais adiante era a Casa do Compadre e, depois, a residência do seu Cândido e dona Lutia com os filhos.
A rotina de uma família mineira e pobre começa com o dia clareando: Cândido e Lutia acordavam e os filhos obrigatoriamente acordavam com os pais para ajudarem nas obrigações diárias e, quando maiores, trabalharem.
Por ser católica, dona Lutia acordava por volta das cinco horas da manhã, fazia o café e se preparava para assistir a primeira missa do dia – certamente na companhia de alguns dos filhos.
Dona Lutia nasceu em 1899 e morreu em setembro de 1986.
Acordar cedo, tomar banho, arrumar-se, tomar o café da manhã e "cuidar da vida" sempre foi a rotina da vida mineira: arrumar-se ou "aprontar" é, para os mineiros, tomar banho, pentear os cabelos, escovar os dentes, vestir roupa muito limpa e bem passada.
Desde pequenos, as crianças mineiras de famílias pobres aprendem a trabalhar: "mente desocupada é moradia do diabo", "mãos ociosas, mãos criminosas".
Com o menino Feu não era diferente: desde criança, aprendeu a brincar trabalhando para ajudar os pais; família pobre, não chegou a concluir o quarto ano primário.
O primeiro emprego do garoto Alfeu foi no jornal Lavoura e Comércio: diariamente, cumpria o ofício de vendedor de jornais. E, por isso, desde criança, teve aulas práticas e com o próprio suor de Relações Interpessoais: um vendedor de jornais torna-se conhecido de todo mundo e aprende a relacionar-se bem com todos.
A sede do jornal Lavoura e Comércio era próxima à praça Rui Barbosa; talvez por conhecer transeuntes e trabalhadores no entorno da praça, tempos depois o garoto Alfeu deixou o ofício de vendedor de jornais e tornou-se lavador de carros.
A praça Rui Barbosa (praça da Matriz) era a praça dos motoristas de táxis e Alfeu lavava, inclusive, os carros dos chauffers ("chofer") de táxi.
Deixando o período da infância, o garoto simples, bondoso e sereno Alfeu tornou-se um adolescente e jovem: somaram-se àquelas as qualidades mais reveladas de rapaz tímido, com um ralo bigode denotando que não era mais criança.
O jovem Alfeu deixou o trabalho na praça da Matriz e tornou-se funcionário do Posto Ford: o Posto era próximo à praça e nele, Feu tornou-se Ajudante de Posto que, possivelmente incluía a experiência anterior de lavar carros.
No Posto Fort e por força mesmo do serviço, o jovem Feu aprendeu a manobrar automóveis: a Auto-Escola também era o serviço diário.
Feu aprendeu a dirigir automóvel lavando e manobrando carros em seu serviço de Ajudante de Posto.
Naquela época, anos da década de 1950, a carteira de habilitação somente era concedida a pessoas maiores de vinte e um anos de idade: por ter vinte anos de idade, a então chamada Carta Municipal de Motorista não poderia lhe ser concedida.
Feu já dirigia automóveis, no restrito espaço do Posto e nos serviços de manobra: o próprio dono do Posto interveio a favor do responsável rapaz e, com vinte anos de idade, Alfeu conseguiu tirar a Carta Municipal de Motorista. Oficialmente, tornou-se o que já era: motorista.
E tão conhecido, trabalhador e respeitado era o jovem que as autoridades lhe concederam liberação para ser condutor de "carro de praça", ou seja, ser motorista de táxi. O seu patrão, ou seja, o dono do "carro de praça" para o qual trabalhava no Posto Ford e que lhe arranjou vaga de motorista era o próprio Jorge Cussi – o Jorginho.
Cada motorista tinha o "carro de praça" com o qual trabalhava e, igualmente, cada motorista tinha os seus dias de folga: Feu gostava tanto de ser motorista de táxi que, em suas folgas, ia à praça da Matriz encontrar seus amigos motoristas e ali passava horas conversando com os mesmos. Eis mais um dos motivos porque todos os seus amigos de profissão tinham-lhe respeito e admiração.
Alfeu expressava no próprio corpo as virtudes de seu jeito de ser, em casa e no trabalho: simples, bondoso, sereno, responsável, sempre disposto
O "carro de praça" usado por Alfeu era um Chevrolet canadense, esverdeado, ano 1952 e pertencia ao seu Jorginho.
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Estamos agora no dia 24 de dezembro de 1957 e Alfeu teria entre vinte e vinte um anos de idade: não mais que isso porque estava há aproximadamente cinco meses trabalhando na nova profissão de motorista de táxi.
Por tais informações, Alfeu nasceu em 1936 ou 1937.
Dia véspera de natal e Alfeu trabalhava: pela manhã do dia 24 de dezembro de 1957 saiu para o trabalho com a mesma disposição e simplicidade; no entanto, vestiu sua melhor roupa – apesar de simples e já usada por ele mesmo.
Alfeu vestia calça de brim azul claro (desgastado pelo uso), camisa esporte creme com listras horizontais morrons e brancas, sapatos modelo mocassim marrom. O sapato havia sido comprado no dia 23 de dezembro em preparação para mais um dia especial de natal.
Nas primeiras horas da noite, Feu ainda trabalhava por causa do grande movimento de passageiros na véspera de natal: o jovem dirigiu-se ao seu patrão e pediu-lhe para que trabalhasse apenas até as 23 horas daquela noite pois que prometera assistir a Missa do Galo junto com a sua família.
Pedido feito – pedido atendido.
Um pouco mais de vinte horas daquela noite, um homem identificado pelo nome de Antônio aproximou-se do jovem Alfeu e solicitou-lhe uma "corrida" até a região conhecida pelo nome de Chuá: a "corrida" era mais ou menos longa, sobretudo pelas condições precárias das estradas da época.
Chuá era um pequeno povoado localizado na BR 262: de Uberaba até o Chuá eram 18 quilômetros.
O solicitante prometeu uma gratificação extra para a "corrida": pensando em ter um dinheiro a mais, disponível para a família numa data festiva, Alfeu aceitou a "corrida".
Seu irmão João de Souza, também motorista de táxi, estava presente e tentou fazer com que Alfeu desistisse dessa "corrida" de última hora para o Chuá: não seria seguro o jovem rapaz atender a um desconhecido, naquela hora, em véspera de natal, numa "corrida" um pouco mais longe.
Apesar das advertências do irmão, Alfeu decide fazer a "corrida" – a sua última viagem daquela noite... Daquela noite, naquela vida!
Com certeza, o jovem Alfeu traçou mentalmente o itinerário da viagem; entretanto, o passageiro pediu-lhe para que, antes de "pegar a estrada", fosse rumo ao posto Shell onde um outro passageiro o aguardava.
Alfeu conduzia dois homens: Antônio (o contratante do serviço) iaao seu lado, na frente, e o outro no banco traseiro.
A estrada estreita ligava os municípios de Uberaba e Campo Florido.
Quando Alfeu chegou próximo ao povoado Chuá, o outro passageiro de nome Elias pediu-lhe para entrar na estrada em direção à cidade de Conceição das Alagoas: após aproximadamente cinco quilômetros, o carro chegaria a um mata-burro num local denominado Capelinha.
O passageiro Elias determina que Alfeu ultrapasse o mata-burro; Feu diminuiu a velocidade e preparava-se para atravessar o obstáculo.
Iniciava-se o fim de um vida digna.
Há descrição pormenorizada revivendo o trágico e cruel fim de Alfeu. Opto por não relembrar, apenas dizendo: o jovem motorista foi vitimado com dois tiros de revólver calibre 22 e obviamente, prenunciando a morte, parou o carro. O disparador desceu do carro e junto com o seu comparsa tiram Alfeu do carro e o arrastam para uns cinco metros além.
A juventude e a força de Alfeu aumentaram-lhe a agonia: ainda não estava morto, apesar dos dois tiros. Ainda conseguiu levantar-se um pouco, intentou correr em direção a uma cerca metálica: os criminosos, vendo a tentativa da vítima, retornam e efetuam mais disparos.
Juventude, força e vontade de viver estranhamente prolongam a agonia de Alfeu: com tantos disparos e esvaindo-se em sangue, o jovem ainda não havia morrido.
O criminoso Antônio, certamente irritado com aquela resistência e estimulado pelo seu cúmplice Elias, aproximou-se mais daquele jovem trabalhador e rasga-lhe o corpo com incontáveis facadas.
Na perícia posteriormente realizadas, as perfurações no tórax esquerdo mediam 25 milímetros, além das perfurações nas mãos, nos antebraços, nos braços, nas coxas, na perna direita, na testa e demais áreas do rosto; ainda depois, a mesma perícia constaria que a morte de Alfeu foi causada por intensa hemorragia gerada por perfurações com arma branca.
O simples e belo jovem Alfeu tivera, além de tudo, o seu rosto desfigurado e irreconhecível.
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Investigações policiais posteriores, exigidas e aclamadas pela população de motoristas de táxi de Uberaba, conseguiram capturar e prender os assassinos.
O velório e o sepultamento de Alfeu mobilizaram toda a cidade de Uberaba: as manifestações de apoio à família e de pesar de todos os uberabenses foram instantâneas e quase permanentes.
Alfeu foi um dos primeiros (e, pelas condições, talvez o primeiro) motoristas de táxi a ser barbaramente assassinado: o velório aconteceu na sede social da Associação de Chauffers e Condutores de Veículos de Uberaba, localizada na rua Aristides Borges, número 7. Este também foi o local do velório do meu irmão, Manuel Carlos Fernandes, em 1962.
O túmulo de Alfeu no cemitério uberabense de São João Batista foi, durante décadas, o túmulo mais visitado e mais florido.
Na minha infância e juventude, acompanhando minha mãe Geraldina Pereira Fernandes à sepultura de Manuel Carlos Fernandes, ainda relembro como era a sepultura de Alfeu: não parecia uma sepultura – parecia uma floricultura. Incontáveis e permanentes coroas de flores tornavam a sua sepultura intocável.
Lembro-me de que, numa época, o túmulo estava quase irreconhecível pelo excesso de velas que o povo acendia sobre ele. Depois, construíram um local no próprio túmulo para depositarem as velas acesas.
Velas, fitas, gente ajoelhada, orações e súplicas eram – e continuam sendo – constantes: recordo-me de ter visto (e ouvido), ao lado de minha mãe, dezenas de homens, mulheres e crianças rodeando a sepultura de Alfeu e rezando o Rosário.
Inúmeras pessoas, de ontem e de hoje, dão testemunho de milagres realizados, de graças alcançadas pela evocação de Alfeu e sua intercessão.
Minha mãe não avançava até a sepultura de meu irmão antes de passar pela sepultura de Alfeu: ali orava, acendia velas, retirava flores do imenso buquê de flores que preparava para o túmulo de meu irmão e me falava de Alfeu. O último gesto de minha mãe era passar a sua mão direita sobre a fotografia de Alfeu, presa ao seu túmulo, retornar a mão à boca e novamente colocá-lo sobre o retrato: beijava a foto de Feu com os lábios.
Com a mesma mão que havia tocado o retrato, minha mãe tocava-me o corpo e, depois, dizia-me com tonalidade respeitosa e lacrimonosa: "ele é muito milagroso".
Depois, íamos para o túmulo de Manuel Carlos Fernandes; passávamos horas ali, eu e minha mãe, até que ela resolvia ir embora. Antes de chegar ao portão principal do cemitério, minha mãe voltava ao túmulo de Alfeu e se despedia, rogando para que ele "olhasse" por nós, em nome de Deus.
O respeito de minha mãe e meu hábito em acompanhá-la ao cemitério que, segundo ela dizia era o seu local preferido, fez-me, depois e por incontáveis vezes e ocasiões, ir sozinho à sepultura de Alfeu e de meu irmão, além de visitar outros tantos túmulos do Cemitério São João Batista, em Uberaba.
Visitar sepulturas, para mim, era visitar amigos e conhecidos de minha mãe; consequentemente, eram meus amigos e conhecidos também cujos corpos estavam ali sepultados.
Por minha mãe, aprendi desde criança a conviver mais com os mortos (ou supostamente mortos) do que com os vivos.
Carlos Fernandes
Enviado por Carlos Fernandes em 29/07/2011
Alterado em 29/07/2011