GERALDINA PEREIRA FERNANDES (*23.Junho.1913; +23.Julho.2002)
Textos

PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO: CONIUNCTIO (conjunção)
 
1º. Grau: Unio corporalis (união corporal)
Literalmente, unio corporalis é o demorado processo de integração do corpo em pedaços.

Do nascimento até aproximadamente a puberdade, homens e mulheres, vivem a experiência de ser um corpo em pedaços; nesse longo período, do nascimento até a puberdade, as experiências e as relações infanto-juvenis são (ou deveriam ser) dirigidas para aquela integração desse corpo vivido em pedaços.

Os “problemas da adolescência”, gerados e fomentados por tipos de sociedades que não oferecem ritos de iniciação integradores para jovens, são expressões do clímax daquela busca de integração do corpo despedaçado, vivida desde o nascimento: aqueles “problemas” resultam do esforço malsucedido para integrar efetivamente o que vem sendo buscado nos anos anteriores. Lamentavelmente, as nossas sociedades não proporcionam aquela efetivação: jovens e adultos (e até idosos), não raro, passam os anos de suas vidas despedaçadas resultantes de corpos despedeçados.

A unio corporalis  expressa aquela integração adequada ou bemsucedida – o que é raro nas sociedades contemporâneas. Obviamente isto é uma catástrofe (individual e coletiva), estudável  e verificável nas mídias, nas ruas, nos lares, nas escolas, nos locais de trabalho, nas igrejas, nos lazeres, ou seja, em todos os ambientes, espaços e contextos humanos.

Particularmente, a Psicanálise interessa-se por esse corpo despedaçado e a tal ponto que Eduardo A. Vidal afirma: “o corpo da Psicanálise não é o dos órgãos nem o carne. O corpo resulta da imagem que se configura como totalidade antecipada, sobrepondo-se à carência e ao desamparo do recém-nascido. A  imagem terá sempre a função de suprir a carência e guardará a marca da primeira dependência do Outro permanecendo irredutível na alienação do sujeito.” (VIDAL, 2000, p.7-8)

O corpo dos órgãos e da carne, sem o qual não há existência humana, é tão tudo e, no entanto, desde o nascimento não o experienciamos como o todo e o tudo que somos: formamo-nos corpo pela ausência, extinção e falta da experiência de corpo.

Tal experiência arrasante e arrasadora de ausência, de extinção, de falta é superada (ou temporariamente acobertada) pela imagem de corpo – que a criança vai adquirindo na relações com as outras coisas e pessoas do mundo exterior. Mas esta imagem é de pedaços – pedaços de corpo infantil, projetada no exterior: um seio e um mamilo são experiências de corpo fundantes, um dedo, uma chupeta ou mamadeira, um pedaço de fralda (substitutivos daquele seio e daquele mamilo) e assim sucessivamente.

O primeiro orifício ou pedaço identificável (e ativado) do corpo é a boca e, certamente por isso, Sigmund Freud deu o nome de estágio oral, embora a fisiologia anal esteja funcionante mas sem ativação centralizada para o bebê: parece que, por toda a vida corpórea, a oralidade continua sendo a base das ações humanas, sobretudo pela absoluta necessidade de alimentação – sem a qual todos morrem. O “penso, logo existo” é uma fantasia cartesiana porque, antes de mais nada e diante de tudo, “alimento, logo existo”. É claro que, para Melaine Klein, o mais fundamental é “seio, logo existo” e isto porque o objeto primário do bebê não é a mãe – é o seio ou aquilo do qual verte leite: isto não é prerrogativa humana. (Se o leite vem do bico da mamadeira, o bico é o seio e a mãe é a mamadeira!).

Mais adiante, tudo o que a criança pequena vê ela leva a boca e quer engolir: para ela, tudo o que está fora são pedaços de si que precisam ser engolidos e incorporados de novo dentro dela. É a experiência da infantofagia, jamais perdida enquanto não chega a morte.

Curiosamente a primeira noção de controle aprendida pelo bebê nasce quando o mesmo percebe-se neurofisiologicamente capaz de controlar os esfíncteres anais e defecar (ou não). Ressalte-se que, para a Psicanálise, a importância do ânus para o bebê não se restringe à questão de controle dos esfíncteres: o controle dos esfíncteres anais são o modelo biológico (e arquetípico) de todo o controle motor do corpo da criança, de todas as dimensões e tipificações de domínio, de todas as formas e dimensões de prazer geradas pelo ato de reter e de expulsar, de puxar, de empurrar, de fazer ou não fazer esforço, de aliviar uma tensão.

A partir de algum momento, a primeira noção da criança pequena é aquele chamada pela Psicanálise de parto anal. Crianças nascem do ânus porque a sua experiência de corpo mostra que do ânus sai algo de si: a tenebrosa imaginação da mente adulta ainda argumentará, contra a experiência de corpo da criança, que os bebês são trazidos pela cegonha e, daí, para outras invencionices geradoras das futuras deseducações sexuais.

O estágio fálico, posterior ao anal, caracteriza-se pela concentração da energia psíquica nos genitais, sem que tal genitalidade seja efetiva ou verdadeira do ponto de vista do genital (o pênis ou a vagina). Em hipótese alguma se pode usar para a criança o conceito de sexo ou sexo genital, simplesmente porque tal conceito ainda não existe para a criança: é um conceito pertencente ao mundo dos adultos.

Para a Psicanálise, o menino percebe que tem algo (o pênis) e a menina percebe que lhe falta algo (o pênis): sobre esta base vivencial primária é construída posteriormente todo o senso de masculinidade (e poder) e todo senso de feminilidade (e carência). Ter ou não ter pênis é a constitucional diferença que marcará a vida e a diferença entre homens e mulheres; e sobre isso (ter pênis = poder; não ter pênis = não ter poder) se ergue o literal problema da heterossexualidade.

Para Otto Fenichel, a subetapa do erotismo uretral  é uma passagem entre o estágio anal e o estágio fálico: nessa subetapa, a urina e o prazer de urinar  ou de reter a urina assumem a mesma importância das fezes e do prazer de defecar ou de reter as fezes.

A descoberta da diferença anatômica entre meninos e meninas acontece na fase fálica: mas, ao mesmo tempo em que se dá esta descoberta acontece, nesta fase, a negação da diferença gerada pela produção infantil de inúmeras fantasias.

O menino tem medo de aceitar a diferença e tem medo de ser castrado: por isso nega a diferença. Essa negação se estabelece pelo privilégio de ter pênis e pelo desconhecimento daqueles outros seres sem pênis (as meninas). Se o menino aceitar o sexo dos outros seres sem pênis ele perderá o próprio pênis; portanto, no mundo do menino só existem meninos (e não meninas). Nesse sentido, o único existente "mundo dos homens" é a constituição primária relacional do que o mundo adulto e psicopatologizado chamará de homossexualidade: a crença de que o a psique masculina pressupõe a psique feminina e de que a psique feminina pressupõe a masculina é uma configuração cultural heterossexista.

A menina fantasia ter em si igualmente um pênis – ainda que este não esteja nela desenvolvido: esta certeza é afirmada e reafirmada pela descoberta do clitóris. O clitóris para a menina é o seu pênis ainda não desenvolvido e sente o medo da castração.

Eis porque para as crianças pequenas, existe apenas um mundo ou um sexo: o sexo das pessoas que tem pênis e isto porque, na fantasia, meninos e meninas tem pênis.

Durante o crescimento, quanto mais evidente se tornar a diferenciação sexual entre meninos e meninas mais angustiante se tornará o complexo de castração tanto em uns quanto em outros: classicamente, a vagina é ignorada pela menina e ela se concentra no clitóris, tanto quanto o menino concentra-se no pênis. Tudo isso acontece antes do complexo de Édipo, comum a meninos e a meninas, que inaugurará o estágio genital.

Para Freud o complexo de Édipo na menina se estabelece partir da inveja do pênis: a menina guardará para si a esperança (a fantasia) de que algum dia terá um pênis desenvolvido.

Aliás, a resolução do complexo de Édipo nas meninas é aceitar que elas são naturalmente castradas!

Outros estudiosos dirão: as mulheres não são castradas; os homens é que são mal desenvolvidos! E isto porque talvez não tenham seios e útero: a Estética (não a disciplina filosófica) já resolveu o problema dos seios em homens, embora silicone ainda não produza leite!
                                               *
A integração de todos os pedaços de corpo não é fácil: por isso, o período infanto-juvenil humano é tão longo – comparado ao de outras espécies animais.

A unio corporalis, na minha interpretação, é a necessária, a desejada (e absurdamente quase não conquistada) integração daquele corpo despedaçado com as inumeráveis imagens de corpo despedaçado formadas ao longo das possíveis (e somente possíveis) experiências de corpo infantil.

E é por isso que toda ação adulta sobre a criança é violentadora se não existir naquele adulto extremíssimo cuidado com aquele infantil corpo despedaçado e a única possível imagem de corpo (pedaços do outro e de si) para o bebê, a criança, o infante: e é igualmente por isso que o caráter pedófilo constitui um crime hediondo. O adulto estraçalha ainda mais aquele corpo despedaçado: ou, antes, despedaça aquela única e possível imagem de corpo infantil  (que para a criança não é um pedaço, mas é o seu todo e o seu tudo possível).

Nunca esqueci de uma cena por mim presenciada, há mais de 30 anos atrás: uma mãe (parecia ser  a mãe) e uma menina que devia ter entre dois e quatro anos andavam a minha frente. Num determinado momento, a mãe enraivecida gritava e xingava a criança (certamente por algum tipo de “arte” que desagradou a mulher); e, alterada, aquela mãe gesticulava com o dedo indicador na cara da criança, deu-lhe um tapa e começou a dar palmadas em suas nádegas. A criança chorava, chorava muito e, espancada, agarrava-se à saia de sua mãe: apanhava, chorava e segurava-se na saia de sua própria violentadora. Era uma cena brutal (acionada pela mãe) e comovente (pela ação da criança que apanhava, chorava e agarrava-se àquela que devia lhe proteger).

A única imagem possível dessa cena é a de um monstro terrível e mortal e grandioso violentando o corpo pequeno, indefeso.

Cotidianamente cenas brutais como estas (semelhantes, piores e inimagináveis) acontecem, vitimando bebês, crianças e jovens: mais socialmente aceitas – e nem por isso menos brutais – é a iniciação prematura de crianças no mundo adulto, tão vigente nas mídias, principalmente em músicas, danças e novelas brasileiras que nada traduzem ou expressam de integração. Tal prematuridade não deveria ser tida como experiência lúdica, supostos talentos precoces.

Mas o corpo despedaçado somente deixará de o ser ao longo dos anos se houverem ritos de iniciação integradores que encerram a fase infantil e iniciem a fase juvenil: e são tais ritos que as sociedades, ditas civilizadas, não tem.

Púberes e jovens continuarão despedaçados relacionando-se em pedaços com outras tantas pessoas despedaçadas: criou-se a Civilização dos Pedaços, Civilização Despedaçada cuja única forma de relacionamento é a de corpos em pedaços.

A mundialização da toxicomania é, em termos psicológicos, mais a busca (frustrante e frustrada) daquela imagem de corpo (e de mundo) unificado (mas em pedaços) – construída pelo bebê e pela criança pequena - do que propriamente fuga ou defesa diante de um mundo sem significado.

No criminologia de homicídios, o esquartejamento de fato praticado por pessoas aparentemente insuspeitas – até serem descobertas – atualiza psiquicamente a história despedaçada do corpo em pedaços.

Na mitologia de vários povos, os rituais de esquartejamento e cocção eram símbolos de ritos de passagem que, não raro, se consumavam em atos de alimentação decorrentes das atividades de caça animal controlada e sem fins predatórios ou comerciais e, também na cocção de ossos (e órgãos) de pessoas mortas, tanto quanto na fabricação de instrumentos de caça com ossos: porque no mundo hodierno tais ritos simbólicos não existem, pessoas despedaçadas consumam em ato a sua história despedaçada – comum à história de outros milhões de corpos despedaçados.  Para escândalo do mundo contemporâneo, tais atos milenares estão vigentes nas mesas de casas e de restaurantes do mundo inteiro: exemplo disso são as churrascadas, com carnes pingando sangue, o devoramento de vários tipos de animais (vivos ou mortos), as mesas decoradas com os cadáveres animais que estraçalhamos com facas, mãos e com os próprios dentes. Por maior o disfarce dos temperos e da terceirização da matança, garantindo a fábula de fonte única (ou maior) de proteína animal necessária para os humanos, transferimos para a comida centrada no hábito carnívoro diário o que inúmeras civilizações milenares faziam em momentos ritualísticos especiais e com objetivos bem diversos (e mais dignamente humanos) que o da alimentação e sem o prazer  “civilizado” de matar para estocar em geladeiras e freezers.

Formas socialmente aceitas para a experiência ritual do esquartejamento são vividas em determinados ofícios e profissões (ou especialidades dentro de algumas profissões), sem serem ritos de passagem integradores: o trabalho em frigoríficos, o trabalho de coveiros, o trabalho de peritos criminais, o trabalho de médicos patologistas, o trabalho dos médicos cirurgiões em algumas especialidades cirúrgicas, o trabalho dos tanatopraxistas, o trabalho dos anatomistas.

A imagem de corpo, primária e demoradamente formada de pedaços de corpo, igualmente formará uma imagem do eu e uma noção do eu em pedaços: o que a educação familiar faz e a educação formal continua promovendo (ou deveria fazer e continuar promovendo) é a integração desses pedaços. Raramente isto acontece no mundo hodierno das famílias (quase sempre desestruturadas e formadas por pedaços de homens e de mulheres despedaçados) e das escolas (igualmente constituídas por educadores despedaçados).

Sem a unio corporalis torna-se impossível o próximo grau da individuação – a unio mentalis.


__________________________________
REFERÊNCIAS
Brandão, Junito de Souza. Mitologia grega. Volume II. 5. ed. Petrópolis: Vozes.1992

Fenichel, Otto. Teoria psicanalítica de las neurosis. 4. ed. Buenos Aires: Paidós. 1971

Jung, Carl Gustav. Mysterium Coniunctionis. Volume XIV/2. Petrópolis: Vozes. 1990

Kusnetzoff, Juan Carlos. Introdução à Psicopatologia Psicanalítica. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1982

Vidal, Eduardo A. Apresentação. In: Escola Letra Freudiana. O Corpo da Psicanálise. Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana. 2000
Carlos Fernandes
Enviado por Carlos Fernandes em 10/02/2013
Alterado em 19/02/2015
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários


Imagem de cabeçalho: Sergiu Bacioiu/flickr