GERALDINA PEREIRA FERNANDES (*23.Junho.1913; +23.Julho.2002)
Textos

Humanidade corporeidade historicidade e finitude são o quadrilátero da condição do homem (e da mulher): especificamente no Brasil dos últimos quinhentoa anos, sobretudo quanto às três primeiras condições básicas de existência, vivemos a perpetuação de um sentido necrófilo de vida, construtor de uma cultura de não cuidado

Se se adotar a concepção de que saúde é um estado resultante do modo de organização da sociedade, quase tudo do que existe no horizonte da saúde não interessa à vida saudável do homem; além disso, o fato histórico é de que inquestionavelmente os modos masculinos de organização da sociedade brasileira, desde o século XVI, têm seguido o princípio do não cuidado com várias ações e estratégias do que denomino de violência histórica

Feitores, colonos, mamelucos ou bandeirantes, capitães do mato, senhores de escravos, governadores reais (e não gerais), imperadores, presidentes e gestores públicos em geral têm sido agentes representantes e perpetuadores da violência histórica produtora de males ou de não cuidado.
Criadas a partir do século XVI, várias são as instituições da violência histórica ou instituições do não cuidado legalizadoras do processo de extrativismo, de expropriação e de expatriação de corpos no Brasil. Entre elas estão as feitorias ou fortificações bélico-militares, a partir das quais se instituiu o tráfico de pessoas, da fauna, da flora, vigente até os dias atuais; as capitanias hereditárias, a partir das quais o território nacional foi transformado numa grande fazenda dividida em vários lotes e distribuídos entre os amigos do rei, então chamados donatários; o colonato, a partir do qual se institui efetivamente a expropriação e a expatriação mediante a distribuição de sesmarias ou terras para serem cultivadas; a degredadoria, perpetuada oficialmente até 1822 e segundo a qual a população indígena nativa ia sendo transtrocada (e, também, miscigenada) pela população julgada socialmente criminosa em Portugal e cuja penalidade de expulsão era vir para o Brasil; o governo real com poderes legislativo, judiciário e executivo contra os povos e as comunidades étnicas indígenas; as câmaras municipais para administração local e a cargo dos chamados "homens bons", ou seja, os representantes dos donos de terra, de escravos, de gado; o Conselho Ultramarino, criado em 1642 para limitar o poder das câmaras municipais e aumentar o poder dos governadores reais; o padroado, vigente até 1889, pelo qual Igreja e Monarquia estabeleciam deveres e direitos comuns; o engenho de açúcar ou o latifúndio agrícola produtor de açúcar e que se compunha da casa-grande, da capela, da senzala, da casa do engenho e da casa de purgação; as reduções jesuíticas pelas quais se destruía a organização social, política, religiosa das comunidades étnicas indígenas; as guerras para produção de escravos, conhecidas como "guerra justa" e "caça ao índio" pelas chamadas Entradas (expedições do governo português a procura de ouro no Brasil) e Bandeiras (expedições não governamentais para extrair, expatriar e expropriar, compostas por brancos, mestiços e indígenas); a Guarda Nacional (1831-1918) criada para perseguir, prender e matar a quem se opunha ao sistema secular de extrativismo, de expropriação e de expatriação.
A organização social da violência histórica no Brasil inicia-se e perpetua-se com a instituição política da estratificação étnica produtora de iniqüidades quais a escravidão humana, contrapondo indígenas, lusitanos, africanos, geradores na interetnicidade da etnia brasileira –mestiça, também cognominada inicialmente de bastarda: essa etnia brasileira funda-se, por sua vez, naquele senso ausente de identidade étnica a que Darcy Ribeiro nomeia de ninguendade e que nasce dos filhos de mulheres indígenas com homens lusitanos. 

A ninguendade é o ethos cultural formador da masculinidade agressiva do homem brasileiro em suas brutais ações de violência histórica: essa ninguendade funda na corpopsique dos homens (e de todo o povo brasileiro) o que eu denomino de complexo de mameluco. 

No Brasil, dentre os já citados personagens criadores ou promotores da violência histórica e mantenedores do não cuidado, estão os brasilíndios ou mamelucos, filhos de mãe indígena e pai português, pelos quais se institui no inconsciente pessoal, coletivo e social o complexo de mameluco: a perpetuação dessa situação cultural está, por exemplo, no atual turismo sexual aonde a mulher brasileira é mercadoria sexual de homens brancos de outros países, muitas vezes engravidando-se e tendo uma contemporânea reedição de mamelucos. 

O complexo de mameluco evoca o estado do filho permanentemente esperando que o “pai”, indiferente ou mesmo morto, admire e reconheça os seus feitos: a busca de admiração e reconhecimento do pai branco, português ou europeu em geral às custas da destruição étnica de onde procede o filho que nega e desqualifica a mãe indígena. Esta é a primeira estrutura formativa da corpopsique do brasileiro, expressa na ação dos mamelucos ou brasilíndios e extensiva à atualidade, cuja teleologia pulsional é desqualificar, condenar e até destruir pessoas e ambientes com valorização ou supervalorização do que é (ou está) de fora, do estrangeiro. Essa associação direta entre afirmação e auto-afirmação pela destrutividade, crueldade, agressividade maligna responsabiliza-se pela associação limitada de poder a domínio, a coerção, à subjugação, à força bruta. 

Há a justaposição de pelo menos duas outras situações de não cuidado conseqüentes ao complexo de mameluco: a primeira em que o filho ou a filha nasce e cresce na condição consciente de não ter pai ou que o possível pai é algo ou alguém não significativo. Uma das situações perturbadoras nesse caso é a dos filhos ou filhas buscarem o pai na mãe e não em outro homem; a segunda em que o filho ou a filha nasce e cresce na condição consciente de ter sido abandonado tanto pelo pai quanto pela mãe. Se na primeira situação de não cuidado o sentimento é de falta, na segunda o sentimento é de extinção; em ambas as situações de não cuidado (falta e extinção) forma-se um sentimento de perda quase constitucional. 

O complexo de mameluco, presente na corpopsique nacional, nada tem a ver com a invenção teorética dos complexos de Édipo e de Electra, segundo a Psicanálise, nem com o conceito de complexos de inferioridade e de superioridade, segundo a Psicologia de Alfredo Adler: no complexo de mameluco o filho não deseja nem se apaixona pela mãe, rivalizando com o pai, nem a filha se apaixona pelo pai rivalizando com a mãe; ao contrário, rejeita e explora a mãe, fere, escraviza, explora ou mata os parentes, invejando e odiando os valores étnicos do pai, mas ao mesmo tempo internalizando e dando consecução aos desejos e vontades paternos. Essa internalização acompanha quase um sentimento permanente de ódio ao que é nacional, de vingança contra todos os que expressem e representem valores nativos e daí a destrutividade ou tendência destrutiva do brasileiro cujo alvo mais visível são o ambiente e as pessoas, junto aos modelos vigentes de desenvolvimento insustentável. 

Culpa e medo, ódio e amor fazem com que o mameluco ou qualquer brasileiro e brasileira da atualidade busque agradar e subjugar-se ao pai (ou a figura, idéias, conceitos, modelos que o representem), numa ansiedade histórica de afirmar-se, justificar-se e confirmar-se, coletiva ou individualmente, perante aquele pai ou qualquer coisa que o represente –sempre percebido como superior, mais importante, mais digno. 

Traduzindo uma ansiedade histórica, as manifestações do complexo de mameluco não possibilitam a formação de consciência histórica nem o desenvolvimento de memória histórica, rejeitando a memória étnica, cronificando o que pode ser nomeado de acefalia histórica. 

Ribeiro, caracterizando os brasilíndios ou mamelucos –agentes de uma direção de violência histórica para a civilização brasileira-, fornece conteúdos definidores do que nomeio ansiedade histórica geradora do complexo de mameluco e que deve ser lida com absoluta atenção para se entender o que está na cabeça de cada um dos brasileiros e brasileiras de hoje:
Foram vítimas de duas rejeições drásticas. A dos pais com quem queriam identificar-se, mas que os viam como impuros filhos da terra, aproveitavam bem seu trabalho enquanto meninos e rapazes e, depois, os integravam a suas bandeiras, onde muitos deles fizeram carreira. A segunda rejeição era a do gentio materno. [...]
Não podendo identificar-se com uns nem com outros de seus ancestrais, que o rejeitavam, o mameluco caía numa terra de ninguém, a partir da qual constrói sua identidade de brasileiro [...]
O primeiro brasileiro consciente de si foi, talvez, o mameluco, esse brasilíndio mestiço na carne e no espírito, que não podendo identificar-se com os que foram seus ancestrais americanos –que ele desprezava- nem com os europeus –que o desprezavam-, e sendo objeto de mofa dos reinóis e dos luso-nativos, via-se condenado à pretensão de ser o que não era nem existia: o brasileiro. [...]
E é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da ninguendade de não-índios, não-europeus e não-negros, que eles se vêem forçados a criar a sua própria identidade étnica: a brasileira.
(RIBEIRO, Darcy. O Povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. Rio de Janeiro: Companhia das Letras. 2001; p. 108, 109, 128, 131)

A identidade étnica do brasileiro e da brasileira nasce e tem-se perpetuado, pois, com uma sensação difusa da ninguendade cujo mecanismo de superação se dá por brutal violência histórica: nessa sensação difusa, formada pela dupla rejeição, identifico o conceito de ansiedade histórica, desencadeadora e mantenedora do complexo de mameluco – tragicamente expresso nas bases dos saberes e pesquisas produzidas no Brasil e que partem das trajetórias e memórias dos estrangeiros e não dos brasileiros. 

O complexo de mameluco responsabiliza-se pelos bloqueios epistêmicos vigentes no país. No conceito de bloqueio epistêmico reúno as conseqüências já destacadas por vários pesquisadores críticos de história vigiada em Marc Ferro, de mistificação historiográfica em Martiniano Silva, de cultura recusante – cultura censurada - cultura retardante – cultura estagnante em Wilson Martins, de idéias fora do lugar em Roberto Schwarz, de subalternismos cognitivos-historiográficos-culturais em destaque nos estudos de Alberto Moreiras. 

O complexo de mameluco também se responsabiliza pelo suposto machismo brasileiro na relação inter-sexos fundada em masculinidade agressiva e historicamente representada na figura do feitor, colono, bandeirante, brasileiro ou traficante (de pau brasil, de pessoas...), senhor de engenho de escravos de gado de café, "homens bons", capitão do mato, coronéis. Do ponto de vista da análise sociopsicológica é sintomático que o nome de brasileiro tenha sido dado aos traficantes ou comerciantes de pau brasil, posteriormente usado para designar os colonos nascidos na América Portuguesa e, hoje, para qualificar todas as pessoas nascidas no Brasil. Tais qualificações ainda carecem de extensa análise socioantropológica, sobretudo relacionadas à formação e ao desenvolvimento da masculinidade: brasilíndios para os mamelucos, brasilianos para os indígenas, brasileiros para traficantes e colonos! Toda essa herança étnica e cultural está ativa na corpopsique do povo brasileiro de hoje. 

Masculinidade e virilidade no Brasil estruturam-se no complexo de mameluco, base da dependência da organização sócio-político-cultural-econômica-religiosa nacional, inclusive o sistema familiar não saudável, incestuoso ou poligâmico instituído pelos homens de engenho, de terras e de corpos e por todas as formas contemporâneas de violências, inclusive a doméstica e a sexual. 

O complexo de mameluco institui como mecanismo de autoafirmação a violência histórica e conseqüentemente estrutura a masculinidade agressiva, expressa na belicosidade, na crueldade, na agressividade e na destrutividade da história do corpo, da história dos homens, da história do não cuidado no Brasil. Todas estas histórias, não fragmentáveis e formadas a partir do complexo de mameluco, expressam-se no século XXI em todas as formas de autocídio, de homicídio (incluindo-se o neonaticídio), e de feminicídio, no tráfico de pessoas, de drogas, de órgãos, da fauna e da flora, nas torturas, nos espancamentos, na violência policial, na violência familiar e na violência sexual, nos estupros masculinos e femininos muitas vezes provocados pelas próprias vítimas e estranhamente consentidos, na destruição ambiental, no turismo sexual, nas políticas públicas e nas leis não efetivas, nas violências contra a infância e a velhice. 

A superação do complexo de mameluco, mantenedor da violência histórica, é uma perspectiva para vencer a cultura de não cuidado e o processo de não cuidado, vigentes nos sistemas culturais, nos sistemas de organização interna e externa da sociedade brasileira. 

A instituição no Brasil da cultura de não cuidado e do processo de não cuidado por violência histórica respondem pela inefetividade das Políticas Públicas ou de Estado e, também, pela distorção conceitual dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS): intersetorialidade é confundida com parceirismos e pactos na formação de quadrilhas partidárias para dar consecução às mesmas práticas coloniais de escambo, aperfeiçoadas no clientelismo e no favoritismo para interesses não repúblicos; regionalização é confundida com o território da tirania colonial de governadores reais, vice-reis e atuais governadores de Estado; municipalização é confundida com o império dos senhores de escravos, de terras e de gado (café, soja ou qualquer outra monocultura) ou dos apelidados coronéis –legítimos cangaceiros promovedores do banditismo social e político ainda plenamente vigentes; participação social é confundida com manipulação de pessoas a exemplo do que sempre aconteceu com a criação colonial brasileira das câmaras municipais a cargo dos "homens bons" representantes dos ladrões de terra indígena ou dos "juízes de fora"; eqüidade e integralidade são descartadas, apesar de retoricamente afirmadas com saberes e práticas iníquias, fragmentadas, regiamente financiadas. 



(iMAGEM:      Quadro "O Caboclo" de Jean Baptiste Debret)
Carlos Fernandes
Enviado por Carlos Fernandes em 16/03/2007


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