GERALDINA PEREIRA FERNANDES (*23.Junho.1913; +23.Julho.2002)
Textos


A ORQUÍDEA NEGRA E O POETA
                1                  
No selvático convento
De tantas lembranças caras,
Há no claustro do momento
Rezas, cilícios e taras.
                2
Cada conta de rosário
É flor no canto esquecida
De suspirante orquidário
Em cela desguarnecida.
                3
Mãos saudosas por venturas,
Por desejo e castidade,
Tecem rugas, amarguras
Dos soluços de um abade.
                4
Orquídeas brancas, coitadas,
Sem a luz de extrema-unção,
Têm folhas estraçalhadas 
Pelo vento da ilusão.
                 5
Ávidas pelo deus Eros,
As orquídeas amarelas
Quedam no chão por Anteros
Quais lágrimas caem das velas.
                 6
Tantas orquídeas vermelhas,
Por paixões ruborizadas,
Jazem no colo das telhas
Em casas abandonadas.
                 7
...Choram orquídeas azuis,
Com estigma, entreabertas...
Dentro de anteras viris
Ficam políneas cobertas.
                 8
No claustro dormem orquídeas,
Roxas de paz e mistério...
Olham insones perfídias
Nas covas do eremitério.
                 9
Róseas orquídeas sensatas,
Dantes silentes vestais,
Ornam, noturnas, cordatas,
Os rústicos castiçais.
                 10
As Ninfas cariciosas
Nos olhos e nos olfatos,
Sugam orquídeas formosas
Em paladares e tatos.
                 11
Híbridas espécies, cores
Destas orquídeas lendárias...
Todas fumegam odores
Em mãos nobres, proletárias.
                12
Hábitos de jovens freiras
Nas mãos de homens, compadres,
Cheiram orquídeas faceiras
Entre as batinas dos padres.
                13
Há pendentes nos rosários
Das viúvas suspirantes
Báculos, gestas, vigários
Das orquídeas elegantes:
                14
Nas carnes de tantas flores
Há turíbulos eretos;
São corais de predadores,
Vivos ou ressurrectos.
                15
Ricas orquídeas fanadas
Em procissão de culpados!
Hóstias mudas degustadas
Pela vastidão dos prados.
               16
Nos jardins desses mosteiros
De muros impenetráveis,
As orquídeas nos outeiros
Cantam salmos perturbáveis.
              17
... Dos campos em desatinos,
Onde virgens foram flores,
Ouvem-se gritos e sinos
No quarto dos confessores...
             18
Choram sinos, choram salmos,
Rósea orquídea também chora;
Na cela dos uivos calmos,
De rastros, o padre implora:
              19
...“Úmidos e quentes climas
De sumíssimos templários...
Útero sacro de rimas
Em secretos campanários...
               20
Quantas formas e tamanhos
Têm as glandes dos meus versos!?...
Quantos segredos estranhos
Em pescadores conversos”!...
               21
O padre dramatizado,
Em súplica tão pungente,
Ouve carinhoso brado
De voz clara, muito ardente:
              22
“Nos troncos, pedras, nas Minas
Nasço, cresço nos afagos
Dessas águas-oficinas
De pântanos, rios e lagos...
              23
Subterrâneas, saprófitas,
Outras terrestres e belas,
As rupícolas, epífitas:
Únicas cada uma delas.
              24
Mãos exóticas, humanas,
Tiram-me do lar natural...
Com vasos, jardins e manhas
Torno-me enfeite frugal.
              25
Mesmo cara, desejada,
Fico em cárceres, restrita;
Com dinheiro sou comprada
Por gente estranha, esquisita.
              26
Sou joia da Mãe Natureza;
Mas, por orgulho ou deleite,
Ferem meus dons com frieza,
Fazem-me de mero enfeite.
              27
Castelos, mansões e festas,
Cantos, recantos, museus...
Sou coisa para os estetas,
Crentes, artistas, ateus.
              28
Em linha de produção,
Sou peça de experimentos;
Marca de fútil paixão
Com seus fugazes tormentos.
             29
Não me tenhas por ingrata.
Sou benquista, reconheço.
Dão-me mimo diplomata,
Cercam-me luxos, apreço.
            30
Por mágoas surdas, tu choras      
No claustro dos teus enganos;
Vê mais além as auroras!
Sai dos efeitos insanos”!
            31
...O padre com gesto infante,
Ergue seus olhos molhados...
Com gesto trêmulo, errante
Vê seus medos conturbados.
            32
Uma flor jaz luminosa
No teto da cela escura:
A negra orquídea formosa
Move-se de grande altura.
             33
Toda luz, todo calor,
Na negra orquídea sorvidos,
Formam clima adubador
De suspiros incontidos.
             34
Linguas ardentes, conjuntas,
Nos corpos prenhes de afetos,
Abrem as covas defuntas...
Tons e sons brotam dos tetos...
            35
Move-se braço indolor
Nas plagas da terra quieta;
No húmus fecundador,
O padre gera o poeta.
 
____________
Poema originalmente publicado no e-book “Orquídea Selvagem”. Obra organizada por Márcio Marcelo do Nascimento Sena, de autores diversos, e publicada pelo Grupo Editorial Beco dos Poetas e Escritores Ltda, São Paulo, 2016; p. 44-51.
 
Carlos Fernandes
Enviado por Carlos Fernandes em 09/12/2016
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