No momento atual de institucionalização das Casas de Parto no Brasil e da consciência corporal de que parturição é um ato da mulher, a referência milenar de saberes e de práticas de cuidado é a mulher indígena. Desse contexto, meus conceitos de Ecomaternidade e Ecoparturição envolvem, respectivamente, o pré-natal e o pré-parto, o intraparto e o pós-parto.
A milenar arte de partejar das mulheres indígenas é um ato da mulher e do homem indígenas, ensejante do trabalho das comadres, parteiras e das Casas de Parto no Brasil atual, e do reconhecimento do papel ativo do homem no processo de engravidar, de partejar da mulher e de cuidar do recem-nato.
Nos registros atribuídos a Vespúcio[1] há o testemunho de que as mulheres indígenas
são muito fecundas, e nas suas gravidezes não se preocupam de fadiga alguma; os seus partos são tão ligeiros que paridas de um dia, vão fora para tudo, e principalmente a se lavarem nos rios, e estão sãs como peixes. [...]
Na mesma fonte supra-citada, Vespúcio ratifica o comportamento intra e pós-parto das mulheres e os seus corpos saudáveis:
as suas mulheres [as indígenas] nos seus partos não fazem cerimônia alguma, na maneira das nossas [as européias;] comem de tudo, vão no dia mesmo ao campo se lavarem, e mal se escutam os seus partos. [...]
uma coisa milagrosa a nós pareceu que entre elas nenhuma se visse que tivesse as maminhas caídas, e aquelas que tinham parido pela forma do ventre e na estreiteza [=parto vaginal] em nada se diferenciavam das virgens, e nas outras partes do corpo semelhante pareciam.
[...] por maravilha verias as tetas caídas numa mulher, ou por muito parir o ventre caído, ou outras pregas, que todas parecem que nunca pariram.
Além do testemunho de Vespúcio, José Martins Catharino compila vários testemunhos de outros estudiosos quanto a arte indígena de partejar a ser reaprendida pelas mulheres da atualidade.
Quatro referências históricas e que servem como advertência contra a medicinalização do parto são registradas por Catharino:[2]
-as mulheres não buscam ajuda de parteiras, tendo seus filhos aonde quer que o momento do parto aconteça;
-sentindo aproximar-se a hora do parto, a mulher noticia as vizinhas e, de casa em casa, todos são avisados pelo anúncio do nome da parturiente que pariu ou que está prestes a parir;
-no intraparto, se há demora na sua consecução, o pai assiste à mãe, massageando-lhe o ventre;
-o cuidado ao recem-nascido é tarefa do pai, provavelmente após o couvade, uma vez que a mãe retorna aos seus afazeres habituais.
A competência da mulher com o evento do próprio parto resulta da preparação da mesma pelas mulheres mais velhas no período em que se torna também uma mulher: uma educação quase totalmente desassumida pelas mães da contemporaneidade.
Há o destaque para o fato de que a não busca de ajuda expressa a concepção natural de gravidez e parturição da mulher indígena; e, por isso, é um ato da mulher.
Outra questão significativa: o parto também é um fato social. As vizinhas são comunicadas do acontecimento pela parturiente; esta socialização do parto nas sociedades indígenas se justifica pela sua ímpar pedagogia em que toda a comunidade se responsabiliza pela educação da criança. Aqui está a evidência do Paradigma de Educação Comunitária sem possibilidade do triângulo da psicopatologia familiar pai-filho(s)-mãe e, conseqüentemente, limitando a teoria da constitucionalidade dos complexos da Psicanálise.
Possivelmente, a tradição indígena do couvade em que o pai, após a mãe ter parido, deita-se na rede, repousa, recebe visitas, cumprimentos e presentes, como se ele fosse o parturiente, indica a concepção do papel ativo do homem na gestação e na parturição: somente uma sociedade matriarcal tem tal concepção do papel inclusivo do homem na gravidez e no parto de uma mulher.
[1] VESPÚCIO, Américo. Novo Mundo: cartas de viagens e descobertas. Porto Alegre: L&PM. 1984; p.93
[2] CATHARINO, José Martins. Trabalho Índio em terras da Vera ou Santa Cruz e do Brasil. Rio de Janeiro: Salamandra. 1995; ps.183-6