A apresentação da Lascívia, Luxúria e Volúpia na condição de deusas resulta do Projeto de Pesquisa “Corpoanálise da identidade sexual do homem: estudos de Psicomitologia e Enfermagem”, cadastrado na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo, sob o número 9174/2018. O subprojeto de Iniciação Científica, na modalidade PIBIC, é desenvolvido junto com a graduanda em Enfermagem Alícia Merícia Mendes Figueiredo e tem por título “Os padrões caracterológicos de cuidado e de não-cuidado do personagem bíblico Noé na formação do homem e da paternidade”.
O termo hebraico para lascívia é zimma. No livro bíblico do Primeiro Testamento tem a significação de “desejo, pensamento, imaginação ou propósito íntimo e obscuro caracterizado pelo pensamento pecaminoso”2; no Segundo Testamento é transliteração do termo grego alsegeia, significando “luxuria desenfreada”, “lubricidade”, “libertinagem”, “impudor” e “deturpação”3.
Luxúria deriva do latim luxuriae, cuja raiz é – lux. Daí, tudo o que se refere a luxúria tem conotação de luz, excesso (de luminosidade, de brilho), exuberância, profusão. Nesse itinerário, liga- se à volúpia no sentido exuberância, de profusão.
O termo latino para Volúpia é voluptas. Na mitologia romana, Volúpia é filha do deus Eros e da princesa Psiquê, a mesma que, na mitologia grega, é nomeada de Hedonê – deusa do prazer. Depois de muitos padecimentos quase intransponíveis4 e com a intervenção do deus Mercúrio (Hermes), Psiquê é levada ao Olimpo e torna-se imortal. Somente então formalmente casa-se com Eros. Não sem importância o detalhe mítico de que Hedonê ou Volúpia, nasce no Olimpo como a deixar claro para os mortais de que prazer, amor e paixão é um apanágio dos deuses a que homens e mortais não têm acesso. Eis o motivo pelo qual, ao menos no Ocidente, as grandes histórias chamadas de amor são tragédias e dramas, historificando a não consecução do amor. Fato esse igualmente evidenciável nas letras de canções brasileiras onde o desfile viciante é de lágrimas e de dor, de sofrimento e de tristeza, de tédio e de traição, de separação e de abandono, de desgosto e de aborrecimento – tudo isso regado a muita insônia, bebedeira e prejuízos emocionais e financeiros, quando não a violência e a morte.
Para brevemente relembrar os padecimentos quase inteiramente voluntariosos de Psiquê, deve-se acentuar que os mesmos são consequentes à sua arrebatadora beleza e pela qual todos os homens, ao invés de disputar-lhe o amor de mulher, adoravam-na qual se a mesma fosse a deusa Afrodite. Por tal adoração, os templos e santuários da deusa começaram a ficar vazios.
Certo dia, Eros que a tudo invade foi invadido por Psique e solicitou ao vento Zéfiro conduzir A Bela ao seu Palácio Encantado. Uma legião de vozes serviam a deslumbrada anfitriã e, desde a primeira noite, Eros a visitava para manter atos sexuais. Assim era toda noite e, antes do amanhecer, retirava-se o deus sem permitir à mulher a visão de seu esplendor.
O retiro de amor entre Eros e Psiquê não permaneceu em segredo por muito tempo. A deusa Fama encarregou-se de divulgar a “desdita” da suposta prisioneira Psiquê.
As duas irmãs de Psiquê, cobertas de luto, com segundas intenções visitaram os pais para consolá-los. Mesmo advertida por Eros do perigo iminente, a jovem amante convenceu o deus a permitir o transporte das irmãs até aquele palácio pelo mesmo vento Zéfiro.
Deslumbradas com a ventura de Psiquê, as irmãs foram possuídas por Inveja, ainda mais porque os seus esposos não tinham nenhum atrativo: um era de baixa estatura qual um menino e o outro era velho e doente. Voltando aos seus lares, planejam um modo de aniquilar a ventura de Psiquê. E, dias depois, retornam ao palácio da irmã, conseguindo envenená-la com uma desconfiança: Psiquê não se deitava com um homem, mas com um monstro! E, por isso, precisava precaver-se e desmascarar o terrível visitante noturno.
Envenenada pela desconfiança, Psique se arma com um punhal e com um candeeiro. Quando a noite o belo deus dorme ao seu lado, projeta luz sobre o amante. E, decepcionada consigo mesmo e radiante com a formosura do deus ao seu lado, Psiquê não consegue mexer-se e nem afastar seus olhos da contemplação daquele rosto divino.
Psique tentou matar-se com o punhal levado para atacar o suposto monstro, mas a arma lhe caiu das mãos e, inadvertidamente, feriu-se com uma das flechas de Eros. A princesa, agora e para sempre arrebatada de amor, ataca a boca de Eros com beijos, esquece-se do candeeiro aceso que derrama uma gota de óleo no ombro de Eros adormecido.
O formoso Eros acorda e, percebendo-se descoberto, sobe aos céus e, para sempre (pelo menos por enquanto), afasta-se de Psiquê. Em vão, a partir desse dia, Psique peregrina em busca do amante.
Uma Gaivota vai até Afrodite e narra toda a história entre Eros e Psiquê, inclusive com relação ao ferimento do filho. Furiosa e ardendo de ciúmes pelo filho, Afrodite recolhe-se ao reino de Poseidon, enquanto Psiquê prossegue desorientada em busca de Eros.
Na sua busca alucinada, chega ao palácio de Afrodite, onde é atendida por três de suas escravas: Hábito, Inquietação e Tristeza. Após ser humilhada e espancada pelas servas, Psiquê é levada à presença de Afrodite. Furiosa, a Grande Deusa reinicia as sessões de humilhações e espancamentos, após os quais impõe à princesa a realização de quatro trabalhos impossíveis de serem concretizados.
O primeiro impossível trabalho para ser realizado em apenas uma noite era Psiquê separar, por espécie, um propositadamente misturado monte de trigo, cevada, milho, grãos-de-bico, sementes de papoula, lentilhas e fava. Socorrida por um batalhão de formigas operárias, tudo é separado e o primeiro trabalho humanamente impossível é realizado.
O segundo trabalho impossível é adentrar em um bosque, próximo a um perigoso rio, e recolher do corpo de furiosas ovelhas
flocos de lã de ouro. Desgostosa com a terrível impossibilidade, Psiquê entra no bosque para matar-se no rio. Um caniço verde a impede de cometer suicídio, orienta- lhe como recolher os flocos exigidos e o segundo trabalho humanamente impossível é concretizado.
O terceiro trabalho impossível é escalar um escorregadio e íngreme rochedo, carregando um vaso de cristal, chegar a uma fonte vigiada por horripilantes dragões e encher o delicado vaso com aquela água – a mesma água formadora dos rios Cocito e Estige, dois dos rios no reino de Hades. De novo, Psiquê intenta matar-se e é socorrida por uma águia de Zeus que lhe transporta e lhe permite encher de água o vaso de cristal.
Divinamente furiosa, Afrodite exige o último e fatal trabalho. Psiquê recebe da deusa uma pequena caixa, cabendo-lhe penetrar no mundo de Hades, apresentar-se a Perséfone e pedir-lhe, em nome de Afrodite, uma pequeníssima porção de imortal beleza. O argumento para o pedido era que Afrodite gastou toda a sua divina beleza cuidando de Eros doente. Novamente, Psiqué decide matar- se: eis o caminho mais curto para chegar ao mundo dos mortos. Impedida por uma alta Torre da qual pretendia lançar-se, recebe instruções pormenorizadas do modo como chegar ao reino de Hades e como se comportar perante Perséfone. Recebida com extrema gentileza pela esposa de Hades, a jovem princesa explica-lhe o motivo da visita e recebe da deusa a porção da imortal beleza, encerrada na pequena caixa. Ao sair do Hades, o dia amanhecia e uma fatal curiosidade se apossa de Psiquê: abrirá a caixa e tomará um pouquinho da porção e, desse modo, reencontrará e reconquistará o amado Eros. Surpreendentemente abre a caixa e, ao invés da porção de imortal beleza, é bafejada pelo sono paralisante.
Eros se recupera do ferimento, sente saudades de Psiquê, encontra-a em sono profundo, recoloca na caixa o sono paralisante, desperta a amada e orienta-lhe a entregar a encomenda a Afrodite. O formoso deus pede a intercessão de Zeus e esse ordena a Hermes para chamar todos os deuses e deusas a fim de realizar uma assembleia.
Perante os demais Imortais, Zeus ordena que Eros se case com Psiquê. O argumento de Zeus para oficializar o casamento é interromper a luxúria de Eros. Os Imortais aprovam a ordenação, Afrodite perdoa Psiquê e a princesa é imortalizada. Do divino casamento, nasce Hedonê ou Volúpia - a deusa do prazer.
Pelas íntimas correlações, apresento Lascívia, Luxúria e Volúpia na condição de irmãs trigêmeas – não no sentido biológico, mas no entrelaçamento de suas qualidades.
As deusas trigêmeas Lascívia, Luxúria e Volúpia têm um poderoso séquito de manifestações insinuadoras e insidiosas, não restritas ao âmbito do que se conhece com os termos sexo e sexualidade. Tais manifestações são conhecidas pelos termos (as vezes usados como metonímias) impureza, libertinagem, incontinência, despudor, sensualidade, libidinagem, concupiscência, lubricidade, fornicação5, impudicícia, devassidão.
Lascívia nada vê e tudo olha; embora jamais alguém a contemplou nua, ela estimula a nudez de tudo e de todos, a todo tempo e em todo lugar – principalmente a nudez corpórea. Sua especialidade é a da insinuação por palavras, pensamentos, sentimentos e atos; por isso, no campo sexual, é patrona de todas as artimanhas do jogo e da sedução para arrastar e convencer, fomentando toda a espécie de deboche, de pornografia.
Porque nada vê e tudo olha, a presença e a ação da Lascívia são de despudor, de impudicícia, de devassidão.
Luxúria nada ouve e tudo escuta, opõe-se à continência e à castidade com relação a qualquer pensamento, sentimento, palavra e ato. Embora onipresente em todas as áreas da atividade humana, facilmente está envolvida com o mundo sexual. Porque nada ouve, desprestigia, indignifica e zomba de tudo quanto não se relacione à fruição máxima de todos os prazeres. Eis porque, sempre insatisfeita, ela afunda todos em vícios, tornando-os uma necessidade permanente e irresistível.
Porque sempre insatisfeita, Luxúria está sempre à procura de formas e de fórmulas para satisfazer sua suposta falta, carência ou extinção de algo; por isso, facilmente é a força motriz de todas as formas de exagero. Com relação ao mundo sexual promove e mantém o grau máximo possível de lubricidade6, libertinagem, fornicação, adultério, parafilias, incontinência e toda forma de orgia sexual.
Ainda porque sempre insatisfeita, Luxúria nunca se cansa, desconhece repouso e, por isso, leva o seu séquito à fruição de tudo até a máxima exaustão, do ponto de vista humano.
A especialidade da Luxúria é diluir, quebrar, afastar qualquer resistência que se lhe opõe aos desígnios e, notavelmente, sua marca registrada é a da possessividade e do ciúme absolutos – embora tal marca esteja presente nas duas outras irmãs.
Volúpia nada fala e ninguém jamais ouviu sair de sua boca uma palavra clara, uma frase ou locução ainda que diminuta; no entanto, distingue-se por uma emissão melodiosa, clemente e suplicante de sussurros onomatopeicos, de gemidos lancinantes de desejo e de prazer com relação a tudo. Seu séquito de humanos, em geral, são silenciosamente insinuantes, mostram-se com lábios entreabertos e rogativos, com malabarismos e trejeitos vários – inclusive com a língua, quando a expõe. Sua especialidade é criar, promover e manter todas as possíveis formas e os mais insuspeitos jogos de sensualidade e a sua arma é prenunciar e anunciar deleites e delícias, com isso fomentando o desenfreio de todas as paixões (incluindo todas as formas do que se possa chamar de amor) cuja fome e sede nunca passam. Em resumo, Volúpia é a deusa do prazer – consumado e irrefreável.
As inseparáveis trigêmeas Lascívia, Luxúria e Volúpia são deusas de encantamentos e presidem as manifestações dos chamados “corações apaixonados”. Por esse motivo e porque sua lei é a do descomedimento, o homem ou a mulher apaixonados nada vêem, nada ouvem e nada falam: querem fruir e usufruir, querem engolir e ser engolidos por beijos, abraços e atos sexuais quase contínuos. Literalmente, a paixão é um feitiço e esse enfeitiçamento é promovido por graus variáveis de lascívia, de luxúria e de volúpia: a variabilidade desses graus depende da consolidação de valores e de crenças de quem está envolvido nesse estado inebriante. Conforme evidencia-se na experiência de todos, inclusive com evidências historicamente estudáveis, a desmedida é da natureza da lascívia, da luxúria e da volúpia e ninguém emerge impune de tê-las por conselheiras e parceiras.
Livrar-se dos descontroles e dos flagelos da lascívia, da luxúria e da volúpia é um trabalho heroico. E isso porque todos os traços que as distinguem estão mergulhados num poderoso veneno, comumente confundido com desvelo, amor, cuidado, preocupação: o ciúme. As deusas trigêmeas são ciumentas e isso porque, igualmente, são possessivas, embora a possessividade e o ciúmes sejam os traços mais marcantes da Luxúria. Na cartilha dessas deusas, nada e ninguém é de ninguém, mas tudo e todos são exclusivamente delas.
O caráter lascivo, luxuriante e voluptuoso está mais na acentuação desmedida do desejo e do ato do que no desejo e no ato em si. Por essa acentuação desmedida, rompem-se todos os limites e fronteiras, finam-se direitos e deveres em nome de uma fruição predatória. Eis porque o estado lascivo, luxuriante e voluptuoso é um estado de possessão, quer dizer, a pessoa está possuída, invadida por forças inconscientes que a inundam e inundam tudo a sua volta.
O caráter lascivo, luxuriante e voluptuoso é o de uma enxurrada, de uma enchente cujo apetite predador e devorador é insaciável. Por isso, os estudiosos desse caráter, notadamente os religiosos, insistem numa ação preventiva radical: mortificação da carne, ou seja, mortificação dos desejos da carne. Porque as deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia insinuam-se por entre pensamentos, sentimentos, palavras e atos aparentemente inocentes (= não nocivos), quando o seu caráter devastador e destrutivo aparece não haverá mais nenhum controle consciente, ou seja, da vontade.
Tal qual diante de uma grandiosa enchente ou enxurrada não há discursos e medidas controladores, disseminadas a Lascívia, a Luxúria e a Volúpia o estado é de calamidade generalizada: o resultado é a contagem e o sepultamento de mortos. Tudo se desagrega e se rompe, há destroçamento, “choro e ranger de dentes”. Esse poder devastador das deusas trigêmeas está exatamente no fato de que elas se insinuaram, se instalaram, se incrustaram, tornando os seus hospedeiros incapazes de qualquer defesa e resistência, à semelhança de um corpo tomado por uma bactéria – antes inofensiva – e, agora, uma superbactéria perante a qual não há mais ação profilática, curativa e nem paliativa. O corpo todo foi tomado e, imprudentemente no início, com a autorização do próprio corpo, ou seja, o corpo incontinente acariciou e hospedou as destrutivas invasoras.
Para o homem desavisado, o flerte com as deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia começam como um ato inocente (não nocivo), de aventura, de travessura, de brincadeira. Mas, trata-se de poderosas deusas (= poderosas forças inconscientes) que não aceitam um mero flerte, mas ardem qual incêndio iniciado com uma faísca para se alastrarem e consumirem a tudo, transformando tudo em carvão e cinzas. A continência como resultado pacientemente conquistado pela prudência é a única fortaleza impedidora de se produzir a faísca da destruição, da autodestruição.
As deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia não são imorais, mas amorais e, por isso, discursos e morais não as comovem, não as detêm. A corporificação de ambas é a de um incêndio generalizado e sem qualquer possibilidade de controle; daí, o estado lascivo e luxuriante é de ardência, de abrasamento.
Devastador incêndio, enxurrada e enchente colossais, dilúvio, vulcão em erupção, maremoto, terremoto, tsunâmi são imagens corporificadas da ação das deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia. Indivíduos, famílias, grupos sociais, nações inteiras, civilizações desmoronaram e desmoronam quando as suas fundações se ergueram e se erguem com os materiais da Lascívia, da Luxúria e da Volúpia.
5 – O dramático e o trágico do encantamento
Na condição de deusas, Lascívia, Luxúria e Volúpia não se apresentam em farrapos, escondidas e anônimas. Ao contrário, são deusas belíssimas, trajam ricas e notáveis vestes, adornam- se com jóias raras, têm pele sedosa e acariciada por embriagantes fragrâncias, seus gestos e toques são comoventes e irresistíveis, seus olhos fascinam e enfeitiçam pelo brilho claro ou escuro, facilmente são aclamadas como heroínas e celebridades, suas vozes e seus sussurros são aveludados, seus lábios são doces como mel, sua sede e fome são insaciáveis, jamais dizem “não” e são sumamente pródigas em afagos, elogios, mimos e delicadezas narcotizantes.
Diante da descrição das deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia, torna-se um contrassenso associá- las a qualquer ato ou coisa impura. Essa é exatamente a teia do seu encantamento, da sua astúcia e do seu caráter insidioso porque a sua aparente pureza é nociva, elas não são inocentes. Por sua presença e ação, libertinagem confunde-se com liberdade, liberdade confunde-se com irresponsabilidade, deveres confundem-se com aprisionamento ou restrição de direitos, bondade se confunde com tolice, esperança confunde-se com perda de tempo e de oportunidade, prudência se confunde com fraqueza, continência se confunde com impotência.
Notavelmente, o profeta Ezequiel (capítulo 16, versículo 15) exemplifica uma das atuações das deusas Lascívia e Luxúria no âmbito da fornicação, ou seja, da prostituição: “Puseste tua confiança na tua beleza e, segura de tua fama, te prostituíste, prodigalizando as tuas prostituições a todos os que apareciam”.
As palavras de Ezequiel não se dirigem a uma pessoa específica, mas é uma referência histórica a Jerusalém – aquela de quem dirá Jesus (Lucas, capítulo 13, versículo 34): Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados, quantas vezes quis reunir teus filhos como a galinha recolhe os seus pintainhos debaixo das asas, mas não quiseste! Eis que vossa Casa ficará abandonada. Sim, eu vos digo, não me vereis até o dia em que direis: Bendito aquele que vem em nome do Senhor!
Equivocadamente, distorcidas interpretações de mitos de várias civilizações antigas associaram as deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia a outros deuses e deusas: Anuket na mitologia egípcia; Kãmadeva na mitologia hindu; Afrodite, Dioniso, Eros e Pã na mitologia grega, Freyja na mitologia nórdica; Vênus na mitologia romana, Tlazoltéotl na mitologia asteca7.
As distorcidas interpretações de vários mitos colaboraram para a incrustração e disseminação do próprio caráter insidioso das deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia, confundidas com outros deuses e deusas, ou seja, contribuíram para a não-consciência milenar do poder invasor e destrutivo das forças inconscientes. Esse poder cresce desmesuradamente quanto maior for a negação e a não-consciência dessas forças alojadas, reprimidas e, supostamente, guardadas e escondidas sob o véu da racionalidade. Nada do que é reprimido desaparece ou morre e não há fórmulas, amuletos, encantamentos, magias, orações capazes de “exorcizar” tais forças psíquicas componentes e expressões da própria energia psíquica.
Por serem forças psíquicas componentes e expressivas da própria energia psíquica, a lascívia, a luxúria e a volúpia não podem ser qualificativos inerentes à condição biológica de homens OU de mulheres – apesar de se tratar de um substantivo, do ponto de vista gramatical, feminino.
As deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia não se relacionam nem são expressões de Pandora, a mulher feita de argila e animada com sopro vital pelo deus Hefesto, a pedido de Zeus. O pedido vingativo de Zeus se deu pelo fato do mesmo ter sido enganado duas vezes pelo seu primo Prometeu -filho do titã Jápeto e da oceânida Clímene:
Pelo roubo de uma fagulha do fogo divino, Prometeu é agrilhoado em uma coluna e, eternamente, uma águia de Zeus deverá devorar-lhe o fígado durante todo o dia. A noite, o fígado novamente cresce e, no dia seguinte e de novo é devorado.
A motivação básica dos atos de Prometeu é o protecionismo pelos homens e mulheres. Por esse protecionismo ou preferencialismo, ele ludibria, engana, trapaceia.
A punição contra Prometeu tem o seu fim apenas quando o herói e semideus Alcides (Hércules e, depois, Héracles) assassina a águia que lhe devora o fígado e o liberta das correntes. O notável é o fato de que o próprio Zeus revoga a ordem impetuosa e autoriza a ação de Alcides – seu filho com Alcmena cuja paternidade é compartilhada com Anfitrião – perdoando os delitos de Prometeu. A autorização de Zeus não é um ato de compaixão por Prometeu nem de impiedade contra a própria águia que lhe obedecia as ordens; ao contrário, é um ato para honrar e glorificar o heroísmo do próprio filho Alcides que, em última análise, é honra e glória do próprio Zeus.
Lascívia, Luxúria e Volúpia também não se relacionam nem são expressões da primeira mulher do primeiro homem (Adão), chamada Lilith e personagem do folclore judeu, derivado da mitologia mesopotâmica8. Na mitologia babilônica, Lilith é uma deusa ou um demônio, uma prostituta sagrada a serviço da Grande Mãe (Inana), cuja morada são os lugares desertos.
Se se considerar a consciência ou o consciente como o mundo dos homens e das mulheres mortais e a inconsciência ou o inconsciente como o mundo dos deuses e das deusas, pode-se falar em forças psicorpóreas conscientes e forças psicorpóreas inconscientes. As deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia são filhas não da intersecção, mas da desmedida acentuação/preponderância de um daqueles mundos sobre o outro.
Tal acentuação/preponderância é tão absoluta que um mundo nega e rejeita a existência do outro. Como negar e rejeitar algo não torna esse algo inexistente, o resultado dessas negação e rejeição é uma deformidade, uma corrupção de pensamentos, de sentimentos, de comportamentos. A essa deformidade ou corrupção chamo de impureza.
Havendo a negação ou rejeição da impureza, o contrapeso é a defesa unilateral da pureza, ou, mais propriamente, de uma aparência de pureza: são os lodos e os detritos no fundo de um poço e cuja superfície está cristalina. Basta uma pequena agitação para que lodo e detrito emerjam; daí, as muralhas erguidas para impedir a visão daquele lodo e detrito. São essas muralhas as produtoras da corrupção deformante dos pensamentos, dos sentimentos, dos comportamentos – em geral, acalentados no mundo da fantasia e, às vezes, irrompendo na forma de sonhos.
As três deusas alimentam-se dos hedonistas sonhos e fantasias humanas – bem característicos da fixação e posterior regressão à fase oral de desenvolvimento: tudo fruir, engolir e receber sem esforço, sem responsabilidade própria, à semelhança dos parasitas (quais os platelmintos9 e os anelídeos10) que alteram sua anatomia e sua fisiologia até a completa degeneração ou extinção de órgãos e funções pela fruição do sangue dos seus hospedeiros – considerando-se as mutações, disfunções e distonias provocadas nesses mesmos hospedeiros pela ação dos parasitas por eles mesmos atraídos e hospedados.
A causa eficiente, geradora da Lascívia, da Luxúria e da Volúpia, é o homem e a mulher; a causa formal é a corrupção dos valores e crenças humanas que engendram propícias condições para que se dê aquela geração. Essas propícias condições são a causa material, dentre as quais:
o precipício da vaidade, o cárcere do exclusivismo, a inundação de excessos, as infiltrações do ciúme, a nuvem do personalismo, os vermes da ingratidão,. a vocação para o abismo, a sequidão dos desocupados, o charco dos distraídos, a lama do desânimo, os espinhos da perturbação, os cupins da velhacaria, as pústulas dos estouvados, os calhaus da precipitação, o vácuo da presunção, a esterilidade da indiferença, o fel dos ironizadores, a brasa viva da intolerância, a podridão da ociosidade, a escuridão do tédio, a chuva ácida das lamentações, o veneno da insensatez, o esqueleto da leviandade, o vale da indecisão, a cegueira da desilusão, o inferno do egoísmo, os aleijumes do oportunismo, o redemoinho dos desajuizados, a penúria dos imprevidentes, a mendicância do orgulho, a areia movediça da ganância, os emaranhados nós do prazer fácil.
Todas as propícias condições geradoras da Lascívia, da Luxúria e da Volúpia podem ser resumidas numa única causa material: a corrupção. Trata-se da corrupção dos valores e das crenças de homens e mulheres que põem do avesso aqueles mesmos valores e crenças, tornando-os contaminados de impureza.
A condição de impureza de pensamentos, de sentimentos e de atos humanos engendra a série de sinônimos ou de manifestações particulares da lascívia, da luxúria e da volúpia – todos resultantes do excesso, da hýbris (da desmedida, da falta de métron): libertinagem, incontinência, despudor, sensualidade, libidinagem, concupiscência, lubricidade, fornicação (= prostituição), devassidão, impudicícia.
As muitas e controversas concepções filosóficas e psicológicas associam a lascívia e a luxúria ao prazer na medida em que o prazer ou sua fruição sinonimiza-se à volúpia. Esvaziar a lascívia, a luxúria e a volúpia do seu conteúdo moral talvez sirva para realçar o fato de que são amorais; no entanto, em nada cooperam para a diferenciação e o aperfeiçoamento humanos. Talvez por isso, em todas as áreas da ação humana pode-se evidenciar expressões de lascívia, de luxúria, de volúpia – até nas mais improváveis e insuspeitas como a área religiosa.
Em geral, grande parte das concepções filosóficas e psicológicas estabelecem o dualismo entre prazer e dor ou prazer e realidade, não raro reduzindo um e outro, respectivamente, ao dualismo órfico entre bem e mal. Ora, se, ainda que momentaneamente a lascívia, a luxúria e a volúpia proporcionam prazer e um bem situacional, a opção mais humanamente lógica é preferir o princípio do prazer (Lustprinzip, em alemão) que a dor e a realidade – a menos que se faça apologia do masoquismo.
A falácia sobre prazer, como um dos componentes ou ingredientes da lascívia, da luxúria e da volúpia, não corresponde às catástrofes individuais e coletivas, palpáveis e evidenciáveis do império desses ingredientes. A História e a Historiografia têm mais contribuições nesse sentido do que a Filosofia, a Antropologia, a Ética e Psicologia.
O estudo e a reflexão sobre as deusas Lascívia, Luxúria e Volúpia e suas ações no processo formativo da masculinidade subsidiam os esclarecimentos sobre a constituição da persona dos homens, com os produtos deteriorados de uma Sombra rejeitada, ocultada, não integrada na consciência para as suas potenciais criações individuantes. Por tais constituição e produtos, indivíduos e povos fabricam mantos de hipocrisias e iniquidades, simbolizados no manto do personagem bíblico Noé.
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NOTAS
1- O texto compõe capítulo da obra inédita intitulada “Vingança da Serpente” e resulta do Projeto de Pesquisa “Corpoanálise da identidade sexual do homem: estudos de Psicomitologia e Enfeermagem”, cadastrado na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo, sob o número 9174/2018. O subprojeto de Iniciação Científica na modalidade PIBIC é desenvolvido junto com a graduanda em Enfermagem Alícia Merícia Mendes Figueiredo. O texto presente refere-se a Subprojeto de Projeto, desenvolvido no âmbito do Programa Institucional de Inicial Científica, na modalidade PIBIC 2019/2020 e sob o título “Os padrões caracterológicos de cuidado e de não- cuidado do personagem bíblico Noé na formação do homem e da paternidade”.
2- Consultar: Juízes (capítulo 20, versículo 6); Jeremias (capítulo 13, versículo 27); Ezequiel (capítulo 16, versículos 15,
27, 43, 58; capítulo 22, versículos 9 e11); Oséias (capítulo 6, versículo 9).
3- Tais significações para algeseia aparecem como fornicação e adultério (Marcos, capítulo 7, versículo 22; Romanos, capítulo 13, versículo 13; primeira carta aos Coríntios, capítulo 6, versículo 18), sensualidade desenfreada (segunda carta aos Coríntios, capítulo 12, versículo 21; Gálatas, capítulo 5, versículo 19; Efésios, capítulo 4, versículo 19), intemperança e desregramento (primeira carta de Pedro, capítulo 4, versículo 3; Judas, capítulo 4), sensualidade (segunda carta de Pedro, capítulo 2, versículo 2; capítulo 7, versículo 18).
4- Mais adiante se faz um breve resumo da história mítica de Eros e Psiquê.
5- No Primeiro Testamento, é correlata à idolatria porque os ritos pagãos incluíam atos sexuais. No Segundo Testamento, procede da palavra grega porneia, incluindo prostituição, incesto, adultério e toda foma de luxúria.
6- Concretamente, significa escorregadio. Em sentido figurado, significa: ausência de força, de rigidez; instável; relaxado.
7- Injustamente denominada “deusa da sujeira” ou da imundície, na verdade era purificava as imundícies morais dos humanos. Porque absorvia as imoralidades do comportamento humano, apresentava-se em quatro fases: na juventude era deusa da distração e da despreocupação; na idade adulta, era deusa do jogo e da incerteza; na meia-idade, absorvia as imoralidades humanas; na velhice, era predadora de jovens.
8- Consultar: HURWTZ, Siegmund. Lilith, a primeira Eva. Fonte Editorial, 2018; KOLTUV, Barbara Black Lilith: a primeira Eva. O resgate do lado sombrio do feminino universal. Cultrix, 2017; PIRES, Valéria Fabrizi. Lilith e Eva: imagens arquetípicas da mulher na atualidade. Summus Editorial, 2008.
9- São animais invertebrados (vermes), o corpo longo e achatado pode dividir-se em duas metades iguais, têm sistema digestório incompleto ou ausente, a respiração é cutânea e não possuem sistema circulatório. Planária, Schistosoma e Taenia solium são três exemplos distintos de platelmintos.
10- Distribuídos em 15 mil espécies, são animais invertebrados, caracterizados por corpo mole, alongado, cilíndrico e dividido em anéis. Minhocas, sanguessugas e poliquetas são exemplos de anelídeos. Muitos dos anelídeos alimentam-se de matéria orgânica em decomposição e outros tantos de sangue de outros animais.